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Por que defender a liberdade de imprensa?

Camilo Vannuchi

23/01/2020 10h08

Não, ela não está bem grandinha para se defender sozinha. Sim, apesar dos erros e abusos praticados em seu nome, é preciso defendê-la.

 

Foi o então ministro do STF, Carlos Ayres Britto, hoje aposentado, quem perpetrou em abril de 2009 a seguinte frase:

A imprensa é irmã siamesa da democracia.

Na ocasião, o ministro relator debruçava-se sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 130, que revogaria a anacrônica Lei de Imprensa, vigente desde 1967. Hoje, mais de uma década depois de aprovado o relatório do ex-ministro, é necessário retomar o sentido dessa frase e assumi-la como farol.

No Brasil de 2020 – um ano que começou com presidente da República ofendendo jornalista e secretário de Estado plagiando Goebbels –, um primeiro desafio importante seria voltar ao axioma de Ayres Britto e entender se ali está um elogio ou uma crítica negativa. A imprensa é irmã siamesa da democracia e, por isso, deve ser atacada? Ou, antes, é preciso defender a imprensa como defendemos a democracia? Pão ou pães, questão de opiniães, e ninguém na atual conjuntura deve ter a ingenuidade de acreditar que a democracia é um bem sob todos os diapasões. Muito menos a imprensa.

Fato é que a imprensa tem sido irmã siamesa da democracia desde muito antes de Ayres Britto virar ministro do STF. Ainda nem existia Ayres Britto e imprensa e democracia já andavam grudadas por aí. Desde a origem, dividiram o mesmo berço – e as mesmas fraldas, diga-se.

Quem inventou isso não foi Ayres Britto. Nem o jornalista Glenn Greenwald, o editor do Intercept Brasil ora denunciado pelo Ministério Público Federal. Tampouco Larry Rotter, o correspondente do New York Times que quase foi expulso do país após difamar, em texto publicado no jornal, o então presidente Lula. A imprensa tem sido irmã siamesa da democracia desde que as páginas dos jornais converteram-se em espaço privilegiado para a reprodução de ideias e pensamentos, sobretudo inspirando debates entre diferentes concepções de mundo e ideologias, o que contribuiu para a formação da esfera pública – a esfera pública burguesa de que fala Jürgen Habermas.

Mesmo antes de existir imprensa, nos moldes da tipologia móvel inventada por Gutemberg, essa mesma função democrática já era exercida por jornais manuscritos e boletins fixados em muros e portas de igrejas. Por extensão, o conceito de imprensa como irmã siamesa da democracia extrapola os limites da imprensa propriamente dita, aquele formato de jornalismo que comunica e informa por meio da impressão da tinta sobre papel, e alcança hoje todo o setor de comunicação social, aqui incluídos os meios eletrônicos e os meios digitais. Para o jurista Fábio Konder Comparato, esses meios de comunicação substituíram a ágora ateniense como espaço de reivindicações, debates e decisões que competem à coletividade, ou seja, à democracia. A quem interessa demolir a ágora?

É verdade que a liberdade de imprensa não é uma liberdade em si. Quando se reivindica essa liberdade – e ela tem sido sistematicamente reivindicada em tempos de avanço, no mundo, de projetos fascistas e de um liberalismo perverso que não encontra barreiras éticas nem legais para suprimir direitos em nome de uma suposta autonomia individual – o que se busca preservar é outro direito: o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de manifestação de pensamento.

O beneficiário do direito à informação, ou da liberdade de imprensa, não é a empresa jornalística ou o profissional da imprensa, mas o público, o cidadão. É em nome do cidadão que se decide pela publicação de determinado tema e se define o destaque a ser dado para determinada matéria, fotografia ou chamada. É o cidadão que tem – e precisa necessariamente ter – a garantia do direito de ser informado. Qualquer outro direito previsto em lei para proteger o jornalista ou o veículo, como o sigilo da fonte, serve unicamente a esse direito maior, um direito coletivo, garantido à sociedade. Sem o direito à liberdade de imprensa, a Folha de S.Paulo não teria revelado o esquema fraudulento de disparo de mensagens que beneficiou Jair Bolsonaro na última eleição. A rede Jornalistas Livres tampouco teria denunciado o plágio de Goebbels, com direito a Wagner como trilha sonora, registrado em vídeo pelo ex-secretário de Cultura Roberto Alvim.

Em outras palavras, reivindicar o direito à liberdade de imprensa é defender o direito que todos nós temos de ser informados, de acessar a verdade factual sem filtros, sem mentiras, sem informações falsas. O jornalista e o jornal são instrumentos. Vem daí o combate seminal à censura, por exemplo. Vêm daí, também, a garantia do direito de resposta, o veto ao anonimato e a previsão legal para se coibir o monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação. Para que a informação seja sempre plural, múltipla, diversa, cidadã. Para que o direito à liberdade de imprensa não se sobreponha, com amparo legal, ao direito que realmente interessa: o de manter a sociedade informada.

Ao mesmo tempo, defender a liberdade de imprensa – como variante da liberdade de expressão – é defender que não haja ameaças a quem se ocupa, profissionalmente, de alimentar a esfera pública com informações. A essas ameaças dá-se o nome de intimidação. E elas surgem de diferentes formas. Ofender jornalistas no exercício da profissão, sobretudo quando o ofensor é o presidente da República, é uma dessas formas. Denunciar criminalmente jornalistas por exercerem a função social que lhes é imputada, o imperativo ético e profissional de divulgar informações de interesse público que forem de seu conhecimento, é outra.

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Sobre o Autor

Camilo Vannuchi é jornalista e escritor. Atua nas áreas de direitos humanos e direito à comunicação. Foi membro da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). É mestre e doutorando em Ciências da Comunicação e integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, filiado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi repórter e editor nas revistas IstoÉ e Época São Paulo e colunista no site da Carta Capital. Atualmente, trabalha na elaboração de um livro-reportagem sobre a vala clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, onde foram ocultadas mais de mil ossadas durante a ditadura militar.

Sobre o Blog

Espaço dedicado a ampliar o debate sobre direito à memória e à verdade por meio da publicação de notícias e análises relacionadas à ditadura militar (1964-1985) e à justiça de transição. Episódios recentes que inspirem à denúncia de violações de direitos, à crítica do autoritarismo ou à defesa da democracia também são assuntos deste blog.


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