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Camilo Vannuchi

Não teve golpe em 1964 e o Corona é só uma gripezinha

Camilo Vannuchi

02/04/2020 00h31

Ele não aguenta. É tipo uma compulsão. Precisa dizer e publicar sandices o tempo todo. Como se houvesse uma horda de zumbis à espera de um comando para entrar em ação. "Ela queria dar o furo!", e a horda passa a distribuir vitupérios e insultos sexistas contra mulheres, jornais e jornalistas. "Você tem uma cara de homossexual terrível!", e em instantes pululam agressões nos mais diferentes matizes do fascismo e da homofobia. "O Brasil não pode parar!", e lá se vai a manada para as ruas, sem necessidade, fazendo troça de quem opta pela prudência do resguardo. "Pulem da janela!" …certeza que muitos pulariam.

Fossem apenas sandices, estaria tranquilo e favorável. As sandices, no seu caso, vêm acompanhadas de incitações perigosas. Pregam a agressão, a banalização do mal e, como vimos mais recentemente, a opção pelo risco de contágio. Vem brincar de roleta russa, vem! Você até pode pegar uma gripezinha, mas pelo menos não vai quebrar. Seria cômico se não fosse trágico. E se ainda tivéssemos alguma condição de rir de falas e atitudes como essas.

Quando surge uma pontinha de esperança, ploft: profere uma nova ignomínia para acordar os zumbis e tranquiliza-los: calma, tá tudo certo, o mito voltou, podem continuar batendo a cabeça na parede. É batata.

Minutos após fazer na TV um pronunciamento que pareceu equilibrado aos olhos de muitos – embora teime em defender o isolamento apenas parcial da população, focada nos grupos de risco, uma postura considerada desastrosa por especialistas –, não resistiu: foi às redes sociais para repetir que não houve ditadura militar no Brasil. É mais forte do que ele.

O post, publicado no Facebook nas últimas horas do dia 31 de março, veio disfarçado de aula de história. Numa rápida cronologia dos primeiros dias de abril de 1964, afirmou que o Marechal Castelo Branco se tornou presidente somente após ter sido eleito para o cargo, indiretamente, em conformidade com a Constituição em vigor, que previa eleições indiretas em caso de vacância da Presidência da República. Ou seja: nenhum golpe em 1964, nenhuma posse ilegítima.

Faltou ao ilustre capitão explicar a vacância, ou melhor, a mentira da vacância, uma vez que, sabe-se há mais de meio século, João Goulart estava em território brasileiro no momento em que deputados oposicionistas declararam vago o cargo de presidente. Faltou também explicar as tropas que partiram de Juiz de Fora e de outras cidades e se dirigiram ao Rio de Janeiro naquela noite de 31, talquei?

A historinha postada na noite de 31 de março de 2020, 56 anos após o golpe contra Jango e contra a democracia, não tem o condão de fazer a ditadura desaparecer, nem a censura, a tortura, as centenas de mortes de ativistas políticos, as milhares de mortes de camponeses e indígenas, os desaparecimentos, a ocultação de cadáveres, a retirada de direitos, o desmonte da educação, a dívida externa monumental.

Mas, para a horda de zumbis, parece que deu certo. Eles continuam firmes e fortes na tarefa inadiável de ir ao trabalho todos os dias mesmo sem necessidade, aplaudir transmissões ao vivo do ídolo com histórico de atleta e, o que nenhuma quarentena é capaz de coibir, entrar nos blogs para xingar jornalistas, comunistas e outros demônios.

Só falta pular pela janela.

Sobre o Autor

Camilo Vannuchi é jornalista e escritor. Atua nas áreas de direitos humanos e direito à comunicação. Foi membro da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). É mestre e doutorando em Ciências da Comunicação e integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, filiado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi repórter e editor nas revistas IstoÉ e Época São Paulo e colunista no site da Carta Capital. Atualmente, trabalha na elaboração de um livro-reportagem sobre a vala clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, onde foram ocultadas mais de mil ossadas durante a ditadura militar.

Sobre o Blog

Espaço dedicado a ampliar o debate sobre direito à memória e à verdade por meio da publicação de notícias e análises relacionadas à ditadura militar (1964-1985) e à justiça de transição. Episódios recentes que inspirem à denúncia de violações de direitos, à crítica do autoritarismo ou à defesa da democracia também são assuntos deste blog.