Lutam Marias e Clarices no solo do Brasil
Dorival Caymmi ousou afirmar, numa canção de 1951, que o amor não foi inventado por ele nem por ninguém. Tenho lá minhas dúvidas. Fui treinado a pensar que as coisas boas da vida não nascem assim, sem mais nem menos, por geração espontânea. A cerveja, por exemplo, foi inventada pelos sumérios, milênios antes de ser dominada pela Ambev. Já o macarrão foi inventado na China e se disseminou pelo mundo graças principalmente aos italianos. Tanto o spaghetti quanto o rigatoni carecem de patente ou pedigree, mas sabemos que ambos foram inventados um dia. O mesmo aconteceu com o sorvete, o samba, o piano de cauda, a rede de dormir, a pipoqueira e a air fryer. Com o amor, não deve ter sido diferente. De qualquer forma, quem quer que tenha inventado o amor, deve ter sido um cara legal. Ou uma moça incrível.
Homem ou mulher, impossível saber o gênero de quem inventou a cerveja ou o macarrão. Já a luta pelo direito à memória e à verdade no Brasil, essa foi certamente inventada por mulheres. Foram as "marias e clarices" da canção de João Bosco e Aldir Blanc cantada por Elis Regina. A "mulher que canta sempre este estribilho: só queria embalar meu filho que mora na escuridão do mar" da canção de Chico.
Mães, irmãs e esposas de mortos e desaparecidos políticos, essas mulheres dedicaram anos, às vezes décadas, a buscar respostas. Primeiro, choraram. Herdeiras de Antígona, desesperaram-se. Tateando quase sempre no escuro, percorreram o submundo do arbítrio e encararam de frente o medo, o risco, a ameaça de retaliação a cada carta, audiência ou manifesto. Desafiaram o que havia de pior e mais cruel no regime de exceção. Procuraram corpos, denunciaram crimes, cobraram reparação. Muitas ainda cobram, denunciam, procuram. Esperam. Não mais os familiares dos quais foram para sempre apartadas, mas justiça, essa matrona fugaz, inconstante, imprevisível.
Com o objetivo de jogar luz sobre a atuação dessas mulheres, o Instituto Vladimir Herzog produziu o livro Heroínas desta História: mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura (Autêntica, 2019, 394 p.). São perfis de quinze marias e clarices escritos por quinze autoras, irmanadas na missão de preservar as histórias dessas trajetórias. Em suas páginas, entendemos que uma infância de privações no interior do Maranhão ajudou a moldar a personalidade aguerrida de Damaris Lucena, viúva de Antônio Lucena, e descobrimos que o corpo do operário Santo Dias só não desapareceu, talvez para sempre, porque Ana Maria, sua esposa, que logo ficaria conhecida como Ana Dias, se enfiou no rabecão e seguiu agarrada a ele até o IML, irredutível. Somos apresentados ao cotidiano de Clara Charf ao lado do marido Carlos Marighella, considerado o inimigo público número 1 em 1969, e acompanhamos a luta de Elzita Santa Cruz para descobrir o paradeiro do filho Fernando, estudante de direito da Universidade Federal Fluminense desaparecido em 1974. Eunice Paiva, Clarice Herzog, Crimeia de Almeida, Ilda Martins da Silva e Egle Vannucchi Leme são outras personagens perfiladas na obra. Negras e indígenas, vivas ou já falecidas, militantes ou sem qualquer relação anterior com a resistência à ditadura militar, mas, sobretudo, mulheres. Entre as autoras dos perfis estão as jornalistas Miriam Leitão, Eleonora de Lucena, Laura Capriglione, Jéssica Moreira, Inês Garçoni, Marina Amaral e Patrícia Cornils.
Organizado por Carla Borges e Tatiana Merlino, Heroínas desta História inaugura um projeto que se pretende maior. O Instituto Vladimir Herzog promete organizar um segundo volume dedicado às mulheres que construíram a luta por verdade e justiça na redemocratização, como as Mães de Maio e outras mulheres que perderam companheiros e filhos, especialmente filhos, para chacinas, milícias, esquadrões e outras facções da polícia que mata. "A intenção é que os textos, embora falem de uma realidade dura e de feridas latejantes, sirvam como um alento em tempos tão difíceis", escrevem as organizadoras na introdução. "Que leitoras e leitores saibam o que se passou com essas mulheres e com o país, e que, principalmente, sejam motivadas à ação e à resistência a partir do exemplo dos pequenos e grandes gestos inspirados por essas heroínas".
No prefácio de Maria Rita Kehl, a psicanalista lembra que foi graças à "desmesura" dessas mulheres, tomando emprestada a expressão utilizada por Lacan, que pudemos conhecer a face mais abjeta da barbárie impetrada pela linha dura do regime militar, sobretudo a partir de 1968. "A coragem das personagens deste livro mostra que a desmesura feminina foi fundamental para enfrentar a brutalidade desmesurada dos governos ilegítimos do período militar", escreveu. "Se tivesse se comportado dentro dos limites impostos pela ordem ditatorial, Clarice Herzog jamais teria conseguido desmascarar a farsa de suicídio que tentaram forjar sobre o seu marido, torturado e assassinado numa cela do DOI-CODI. Ela não recuou diante das ameaças anônimas que recebeu por telefone depois da morte de Vlado". Desmesura semelhante moveu as demais mulheres perfiladas no livro. Sem elas, não haveria políticas de reparação, nem "tortura nunca mais", nem comissões da verdade. Nem Mães de Maio, aliás. Se existe uma história a ser contada desse período recente, por certo não existiria sem essas heroínas, sem essas resistentes.
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Uma versão anterior desta coluna anunciava o evento de lançamento do livro, previsto para o dia 17 de março, no Unibes Cultural, em São Paulo. O encontro foi adiado em razão do coronavírus e permanece sem previsão de nova data.
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