Câmeras no chão: o dia em que fotógrafos de Brasília disseram “basta!”
O ano era 1984. Eddie Murphy levava Um Tira da Pesada paras as telas, os Gremlins não podiam ser alimentados depois da meia-noite e uma grade de ventilação do metrô fazia esvoaçar o vestido da Dama de Vermelho. Os Titãs colavam seus ouvidos no radinho, os Paralamas punham os óculos e viam tudo bem e Chico Buarque, afinal, tinha direito a uma alegria fugaz.
Nada de grande irmão. George Orwell falhara em suas previsões. No 1984 da vida real, o olho que tudo via ainda era coisa do futuro. No Brasil, o que havia de mais próximo era o SNI. E o Dops.
João Figueiredo foi o último dos presidentes-generais. Empossado em 1979, ficou seis anos no cargo e foi substituído por José Sarney, o primeiro presidente civil desde a deposição de outro João, o Goulart, em 1964. No governo de Figueiredo foi sancionada a Lei da Anistia e uma versão atualizada da Lei de Segurança Nacional, até hoje em vigor. A abertura aconteceu, aos trancos e barrancos, mais lenta, gradual e segura do que Ernesto Geisel, o antecessor, poderia prever.
Figueiredo nunca foi muito simpático com jornalistas. Na verdade, Figueiredo nunca foi muito simpático. O caldo começou a engrossar no final de 1983.
A história é prosaica. Figueiredo havia caído do cavalo e apareceu com o braço engessado, o que não passou despercebido pelos fotógrafos. Mas Figueiredo, discreto, preferiu manter o braço o tempo todo para baixo, escondido sob a manga do paletó, para que o gesso não aparecesse nas fotos. No fim da tarde, no entanto, o presidente foi assistir a um filme e, quando a sala ficou escura, levantou o braço para coçar o rosto. A foto foi feita por Wilson Pedrosa e publicada no Correio Braziliense do dia seguinte.
O general-presidente ficou uma fera. E ainda mais arredio com os fotógrafos. Semanas depois, em janeiro de 1984, recebeu em seu gabinete Paulo Maluf, pré-candidato a presidente naquela que seria a primeira eleição direta após 24 anos de ditadura. Figueiredo preferia Aureliano Chaves, mas o PDS, partido apoiado pelos militares, preferiu Maluf para concorrer com Tancredo Neves, o candidato do PMDB. "Sorria", comentou Maluf, sempre muito espirituoso com a imprensa. "Vou rir por quê?", replicou o presidente, com o humor habitual. "Estou na minha sala e fico do jeito que eu quiser". Pronto. Os fotógrafos correram dali para as redações e contaram o que haviam presenciado. Deu manchete no dia seguinte e a retaliação foi imediata.
Agora ninguém mais entraria em seu gabinete, nem jornalista de texto nem jornalista de imagem, esse bando de fofoqueiros. As imagens seriam todas cedidas pela assessoria da Presidência, da mesma forma que as informações sobre os encontros oficiais. Ou seja, a partir de então, apenas um profissional clicaria Figueiredo: Roberto Stuckert, fotógrafo oficial do presidente e pai dos fotógrafos Ricardo Stuckert, que ocupou o mesmo cargo no governo Lula, e Roberto Stuckert Filho, que desempenhou a mesma função no governo Dilma.
No dia 24 de janeiro de 1984, excepcionalmente, os fotógrafos foram novamente convidados a subir ao gabinete. "Então acabou a restrição?", perguntaram. "Hoje é uma exceção", explicou o staff presidencial. "Ah, se é só por hoje a gente não quer", os fotógrafos indignaram-se.
Instalou-se um burburinho entre os profissionais da imagem reunidos diante do Palácio. O que fazer? Até que um repórter sugeriu: "Por que vocês não abaixam as câmeras quando o presidente passar?"
O protesto resultou numa das imagens mais marcantes do processo de redemocratização, capturada por J. França, fotógrafo do Jornal do Brasil, bem posicionado diante do presidente e dos colegas de máquinas paradas. O documentário A culpa é da foto conta mais detalhes desse episódio.
Máquinas paradas, no caso da imprensa, podem significar bloquinhos fechados, microfones desligados e câmeras no chão.
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