Prêmio Vladimir Herzog presta homenagem ao jornalismo que incomoda
Quis o destino que este blog estreasse no dia da cerimônia de entrega do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, um dos mais importantes prêmios de jornalismo do Brasil. Desde 1979, a iniciativa homenageia personalidades que se destacaram na defesa da democracia e da justiça no Brasil e elege as reportagens que melhor contribuíram para denunciar violações de direitos humanos. Grande dia 👍.
Temos em comum — o prêmio e eu — não apenas o ano de nascimento, mas também o compromisso com a defesa dos direitos humanos, da liberdade de imprensa e de um jornalismo sério, justo e emancipatório. Sobretudo, entendemos o direito à memória e à verdade como um dos pilares da construção da democracia, fundamental para que possamos conhecer os crimes praticados pela repressão e avançar no processo de reparação, num primeiro momento, e reconciliação, em outro. Somente assim o Brasil poderá se livrar dos escombros da ditadura que ainda boicotam a democracia no país, tais como o terrorismo de Estado, a violência policial, a tortura, a execução de oponentes e a ocultação de cadáveres, crimes que sobreviveram a Marielle Franco, Amarildo Dias da Souza e tantos outros.
Bom, esta introdução foi só para dar boas vindas e dizer que direitos humanos, ditadura e memória e verdade serão temas frequentes deste blog. Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça. Passemos agora para o tema de hoje.
O jornalismo resiste
Em sua edição de 2019, o júri do Prêmio Vladimir Herzog homenageia dois jornalistas que, nos últimos meses, chacoalharam o noticiário e, por meio de seu trabalho, operaram mudanças importantes na correlação de forças que conduz a política brasileira. Patrícia Campos Mello, na Folha de S.Paulo, e Glenn Greenwald, no The Intercept Brasil, apuraram e publicaram as duas mais importantes denúncias do último período, ambas reportagens investigativas que repercutiram rapidamente e jogaram luz sobre práticas ilegais envolvendo o futuro presidente Jair Bolsonaro e o futuro ministro da Justiça Sérgio Moro. A reação a ambos foi imediata: de um lado, elogios entusiasmados; de outro, ofensas e ameaças.
Na Folha de S. Paulo de 18 de outubro de 2018, dias antes do segundo turno, a repórter especial Patrícia Campos Mello revelou esquema de fraude, caixa dois, propaganda ilegal, calúnia e abuso de poder econômico em disparos de mensagens de WhatsApp. Coalhadas de mentiras, essas mensagens favoreciam a campanha do então candidato Jair Bolsonaro. Com a chamada de capa "Empresas bancam disparo de mensagens anti-PT nas redes", a reportagem de Patrícia revelou que, da forma como a campanha de difamação vinha sendo conduzida por empresas como a Havan, tratou-se de doação empresarial não declarada, o que é vetado pela legislação.
Líder nas pesquisas de intenção de voto, Bolsonaro moveu três processos contra a jornalista na mesma semana e, num de seus últimos discursos, chegou a gritar "Fora, Folha de S.Paulo!". Apoiadores atacaram Patrícia por meio de comentários e mensagens privadas, abarrotaram seu email e hackearam sua conta no WhatsApp. Ameaças à vida e à integridade física da jornalista motivaram manifestações de repúdio de entidades como a Repórteres Sem Fronteira, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPT), com sede em Nova York, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e a Associação Brasileira de Jornalistas Investigativos (Abraji). Nos meses subsequentes, Patrícia recebeu o Grande Prêmio Folha de Jornalismo 2018 e o Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa, conferido pelo CPT, em clara ação de desagravo.
Já o Intercept, portal de notícias dirigido por Glenn Greenwald, tem publicado, desde junho, uma série de reportagens em que expõe conteúdo vazado de aplicativos de troca de mensagens, como o Telegram, entre procuradores de justiça e juízes envolvidos na força-tarefa da Lava Jato. A série, batizada de "As mensagens secretas da Lava Jato" e rapidamente apelidada de Vaza Jato, revela evidente promiscuidade entre os membros do Ministério Público, responsáveis pelas denúncias, e os magistrados responsáveis por julgar os casos — que, por prerrogativa do cargo, não deveriam se manifestar fora dos autos, muito menos orientar a condução do processo pela acusação.
Uma das revelações mais graves das conversas obtidas nesses chats privados é a de que o juiz Sérgio Moro, à frente da Lava Jato, atuou o tempo todo em sinergia com os procuradores que acusavam o ex-presidente Lula, e não como um árbitro imparcial. Como se fosse uma parte interessada em condenar o réu, Moro orientou procuradores sobre a melhor estratégia a seguir, coordenou ações da Polícia Federal — o que também não é sua atribuição — e, como publicado recentemente, chegou a deferir uma busca que não foi pedida por ninguém. A parceria funcionou. A condenação de Lula em segunda instância, a toque de caixa, no primeiro semestre de 2018, foi essencial para que o então candidato favorito nas pesquisas tivesse sua prisão decretada e se tornasse inelegível. Sem poder competir nem participar de comícios ao lado do candidato petista, Lula preso viu a candidatura de Haddad minguar enquanto Bolsonaro se consolidava como franco favorito. Apenas cinco dias após a vitória nas urnas, o presidente eleito anunciou o juiz Sérgio Moro como futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública.
A reação a Glenn Greenwald foi ainda mais violenta. Agora, as agressões ganhavam status oficial. A indústria de fake news mantida por apoiadores do presidente operou a todo vapor, destacando a orientação sexual e a nacionalidade do jornalista e mirando inclusive os filhos de Glenn. Bolsonaro veio a público dizer que o diretor do Intercept, estrangeiro, tinha sido "malandro" ao casar com brasileiro e adotar crianças no Brasil. E que, sendo assim, não corria o risco de ser expulso do país. "Talvez pegue uma cana aqui no Brasil", ameaçou. Moto-contínuo, analistas e comentaristas políticos apostavam na queda iminente do super-ministro. Moro manteve a pasta, mas viu desvanecer o sonho de ser nomeado para o Supremo Tribunal Federal.
Não é mera coincidência que os dois jornalistas homenageados no Prêmio Vladimir Herzog deste ano tenham sido constrangidos publicamente pelo presidente da República e ameaçados por seus seguidores. Jornalismo que incomoda quase sempre é bom jornalismo. Numa época de tantas violações de direitos, em que a democracia está em baixa e a venda nos olhos da Justiça parece simbolizar menos sua equidade do que sua cegueira, é vital ver preservadas a função social do jornalismo e a disposição de profissionais como Patrícia e Glenn em levantar os olhos e desafiar o arbítrio. Liberdade de imprensa é batalha permanente, jamais uma garantia.
Se as instituições realmente funcionassem, o Tribunal Superior Eleitoral talvez tivesse cancelado o primeiro turno do ano passado e cassado a chapa vitoriosa. Também as condenações da Lava Jato poderiam ser todas revistas caso as revelações do Intercept fossem levadas a sério. E o juiz-ministro, destituído por suspeição. Nesses dois casos, a inação do judiciário não ofusca o importante trabalho dos dois homenageados da noite. Ao contrário, torna o bom jornalismo praticado por eles cada vez mais urgente.
Hermínio Sacchetta, in memoriam
Um terceiro homenageado do Prêmio Vladimir Herzog é o também jornalista Hermínio Sacchetta, in memoriam. Nos anos 1940, Sacchetta chefiou as redações da Folha da Manhã e da Folha da Noite, precursoras da Folha de S.Paulo. Sob sua orientação, Florestan Fernandes começou sua carreira no jornalismo e Antonio Candido deu o pontapé inicial em sua trajetória como crítico literário.
Membro do Partido Comunista nos anos 1930, Sacchetta havia sido preso pelo Estado Novo de Vargas, em 1938, mesmo ano em que foi fichado no DOPS. Depois se aproximou do trotskismo e do pensamento de Rosa Luxemburgo, tornando-se um dos líderes da seção brasileira da Quarta Internacional nos anos 1940. No jornalismo, Sacchetta voltaria a enfrentar a censura e a repressão anos depois, em agosto de 1969, já sob outra ditadura. Na ocasião, ocupava cargo de chefia no grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand, quando ouviu no rádio a leitura de um manifesto divulgado por membros da Ação Libertadora Nacional, a ALN, organização armada comandada por Carlos Marighella. Sacchetta ousou publicar o texto no Diário da Noite. Horas depois, oficiais do DOPS foram buscá-lo na redação. A justiça (militar) o proibiu de exercer a profissão e o condenou ao ostracismo. Apenas em 1975, Hermínio Sacchetta voltou a uma redação, na Folha de S.Paulo, a convite de Claudio Abramo. Dessa vez como editor de internacional, nunca mais como secretário de redação ou editor de política.
O Prêmio
A cerimônia de entrega do 41º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos será nesta quinta-feira, 24 de outubro de 2019, a partir das 20h no Teatro de Arena da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o Tucarena (Rua Monte Alegre, 1024, Perdizes).
Vlado, presente!
O evento desta noite também presta homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, patrono do prêmio. Nesta sexta-feira, 25, familiares e amigos lembrarão os 44 anos de seu assassinato, sob tortura, no DOI-Codi de São Paulo, em 25 de outubro de 1975. Vladimir Herzog, presente!
Estaremos sempre aqui às quintas-feiras e excepcionalmente em outros dias da semana. Obrigado pela presença, pela audiência e pela divulgação. Mande sua sugestão para o email camilo.vannuchi@gmail.com.
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