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Camilo Vannuchi

Em tempos de coronavírus e Bolsonaro, o que podemos aprender com Asterix

Camilo Vannuchi

26/03/2020 00h19

Por Tutátis! Estamos cercados. Não pelos romanos, mas por esse vírus maldito. Em nossas casas, nossas famílias, nossas comunidades, nossa missão é resistir. Como a audaciosa aldeia gaulesa rodeada de império romano por todos os lados. "Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor", diz o texto aplicado sobre um mapa na primeira página dos livros da série.

Na semana em que o genial quadrinista Albert Uderzo abandonou para sempre a resistência gaulesa, morto aos 92 anos nos subúrbios de Paris, a saga do herói baixinho e bigodudo e de seu parceiro grandalhão pode servir de inspiração para nós, brasileiros. Na quarentena e na vida.

Uderzo, o ilustrador, criou o Asterix em 1959 junto com René Goscinny, o roteirista, morto em 1977. A primeira história ambientada na aldeia gaulesa foi publicada naquele mesmo ano. Já a primeira revista dedicada exclusivamente a Asterix e seus amigos chegou às prateleiras em 1961 para se tornar um dos maiores fenômenos editoriais da década. Se aquela edição de "Asterix, o gaulês" teve tiragem de 6 mil exemplares em 1961, três anos depois o quarto volume da série, "Asterix gladiador", sairia com 60 mil exemplares em 1964. Em 1966, "Asterix e os normandos" atingiria a marca de 1,2 milhão de cópias vendidas.

Talvez não seja mera coincidência que Asterix tenha estourado na França nos efervescentes anos 1960 e repercutisse com tanta força às vésperas do maio de 1968. Quando grupos de estudantes passaram a ocupar as ruas de Paris e a erguer barricadas em protesto contra o sistema educacional francês e a guinada conservadora conduzida pelo então presidente Charles De Gaulle, a imagem de um rebelde sagaz, disposto a organizar a resistência, se encaixava feito luva na renhida luta empreendida por estudantes e trabalhadores contra infantarias e pelotões. Um Davi abusado, mirando seu bodoque na testa de Golias, seria uma justa analogia com aquele bigodudo petulante, bem-sucedido em trucidar guarnições inteiras de legionários romanos, esses soldados mesquinhos e intelectualmente limitados que, aos olhos dos franceses de 1968, pareciam em tudo com os grupos conservadores a serem dizimados.

Curiosamente, um personagem chamado Coronavírus apareceu numa história publicada em 2017, a 37ª aventura da série. Trata-se de um romano, é claro, que disputa uma corrida de bigas com Asterix e Obelix. O nome foi inspirado numa versão anterior do vírus, menos letal e menos epidêmico que o atual, mas que já causava alguns surtos localizados quando inspirou Uderzo três anos atrás. Na trama de 2017, o Coronavírus é derrotado pelos gauleses.

Na saúde e na política, o Brasil de 2020 guarda semelhanças com a trama de Goscinny e Uderzo. No Brasil do Coronavírus, seguimos isolados, metaforicamente cercados, como a pequena aldeia gaulesa. A doença é o exército romano, permanentemente à espreita do lado de fora. No Brasil de Bolsonaro, os romanos são esses parvos que insistem em desprezar a ciência em pronunciamentos na TV ou em transmissões ao vivo pelas redes sociais, normalmente às quintas-feiras. Cabe aos resistentes improváveis liderados pelo prefeito Abracurcix conter a todo custo o avanço das tropas inimigas, a disseminação generalizada da estupidez e sua fiel aliada: a morte. Antes que o céu desabe sobre nossas cabeças!

Asterix, pequeno notável, é personagem simbólico na batalha de 2020. É ele quem, muitas vezes, aponta o dedo para o obscurantismo jogando luz e bom senso onde impera a confusão. Sobretudo, Asterix não vacila diante do imperativo da resistência. Seu compromisso em cuidar da comunidade e preservar a aldeia só é comparável ao compromisso com a justiça. Se ele sabe que ninguém deve sair de casa, fará tudo a seu alcance para garantir que ninguém saia. Mesmo que isso signifique desobedecer às ordens do chefe Abracurcix ou liquidar com trinta ou quarenta soldados romanos.

A resistência gaulesa também nos ensina a cuidar dos mais velhos. Na aldeia, impera a ética das sociedades tradicionais e autóctones, nas quais os anciões são os donos da história, os conselheiros mais experientes. Aqui e ali surgem episódios de distração ou senilidade, mas nenhum habitante da pequena aldeia é tão indispensável quanto o druida Panoramix, espécie de xamã que mantém sob sete chaves a receita da poção mágica que dá força sobre-humana a quem a ingere. Se, em alguma história da série, a aldeia fosse atacada por uma peste capaz de dizimar os idosos em semanas, ninguém cometeria o desplante de jogar os velhos às piranhas sob o argumento de que serão apenas 5 ou 10 mil mortes e de que a vida precisa continuar.

Obelix, o simpático e entusiasmado parceiro de armas de Asterix, pau pra toda obra nas batalhas e confusões, caiu no caldeirão do druida quando era criança e engoliu uma dose cavalar da poção mágica. Por isso, a força sobre-humana é permanente para ele. Ele sempre pede para tomar mais um pouco a cada convocação para a guerra, mas Panoramix, sábio, nunca permite.

Com Obelix, aprendemos que não faz sentido dar para quem não precisa. Isso seria acumulação indevida. Uma concha a mais de poção para Obelix seria mais ou menos como, em tempos difíceis, conferir uma nova isenção fiscal a um banco ou uma empresa que figurasse no ranking das mais poderosas de um país, quando o que deveríamos discutir é imposto sobre grandes fortunas e renda básica de cidadania. Deixemos a poção para os mais fracos, os que dela necessitam. Para que não quebrem, oras. Porque a guerra, quando dizima uma população, não se resume à perda de 5 ou 7 mil vidas, como alguém comentou recentemente. A guerra destrói a força de trabalho, as matérias primas, a infraestrutura e, sobretudo, o mercado consumidor – para usar uma expressão facilmente compreendida por aqueles que não medem esforços para acumular recursos e poções, quando não estão pedindo empréstimos e renegociando dívidas com o governo, enquanto a massa deixa de consumir.

Finalmente, Asterix nos ensina a celebrar cada pequena vitória. A estarmos próximos e solidários ao final de cada jornada para, cúmplices, nos aquecer junto à fogueira, tomar cerveja, cantar, dançar – e comer javali. Lembremos disso quando essa fase sombria passar. Nossa aldeia vai resistir. Por Tutátis!

Sobre o Autor

Camilo Vannuchi é jornalista e escritor. Atua nas áreas de direitos humanos e direito à comunicação. Foi membro da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). É mestre e doutorando em Ciências da Comunicação e integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, filiado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi repórter e editor nas revistas IstoÉ e Época São Paulo e colunista no site da Carta Capital. Atualmente, trabalha na elaboração de um livro-reportagem sobre a vala clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, onde foram ocultadas mais de mil ossadas durante a ditadura militar.

Sobre o Blog

Espaço dedicado a ampliar o debate sobre direito à memória e à verdade por meio da publicação de notícias e análises relacionadas à ditadura militar (1964-1985) e à justiça de transição. Episódios recentes que inspirem à denúncia de violações de direitos, à crítica do autoritarismo ou à defesa da democracia também são assuntos deste blog.