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Camilo Vannuchi

Por que não fechar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal?

Camilo Vannuchi

27/02/2020 03h01

A pergunta do título é uma provocação deste articulista. Sou contra fechar qualquer congresso, mesmo que seja o I Congresso Mundial dos Terraplanistas ou o IV Congresso Latinoamericano da Filosofia Olavista. Não obstante, cabe aproveitar a mais recente polêmica envolvendo Jair Bolsonaro, o encaminhamento pelo presidente de vídeo de divulgação de ato contra o Congresso e o Supremo agendado para o dia 15, para registrar algumas questões:

 

  1. Por que o Congresso Nacional passa pano para Bolsonaro?

 

A Lei que define os crimes de responsabilidade foi sancionada em 1950. Não é nenhuma novidade, portanto. Qualquer servidor público que tenha despachado na Câmara dos Deputados ao longo de sete mandatos ininterruptos deveria saber o que diz o Artigo 4º dessa lei:

 

São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra:

I – A existência da União:

II – O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados;

III – O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

IV – A segurança interna do país:

V – A probidade na administração;

VI – A lei orçamentária;

VII – A guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;

VIII – O cumprimento das decisões judiciárias

 

Não foi a primeira vez que o capitão-presidente cometeu crime de responsabilidade no exercício do cargo. É possível dizer que Bolsonaro é useiro e vezeiro em atentar contra o Estado Democrático de Direito. Em ocasiões anteriores, ainda como parlamentar e candidato a presidente, ameaçou fuzilar a "petralhada" e mandar os opositores à ponta da praia (local usado durante a ditadura para a execução de ativistas políticos) e reclamou que o erro da ditadura foi torturar e não matar. "Deveria ter matado pelo menos 30 mil", afirmou, começando pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Já na Presidência, Bolsonaro faltou com a razão, o decoro e a probidade administrativa ao propor aos quartéis que comemorassem o golpe militar de 1964, ao compartilhar vídeos oficiais do Governo Federal em que seu nome era mencionado como responsável pelos feitos do Estado (o princípio da impessoalidade na administração pública é garantido pelo Art. 37º da Constituição) e ao emitir declarações de cunho racista (crime inafiançável e imprescritível segundo o Art. 5º da Carta Magna).

Bolsonaro também comete crime de responsabilidade quando usa de violência ou ameaça para coagir parlamentares no modo de exercer o seu mandato, constranger juiz ou tentar dissolver o Congresso Nacional ou impedir por qualquer modo o funcionamento de qualquer de suas Câmaras (Art. 6º da Lei 1.079/1950). Finalmente, à luz do Art. 9º da mesma lei, é crime de responsabilidade proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. As piadas, as bananas, os palavrões, a grosseria, a difamação de jornalistas, tudo isso conspira para fazer do presidente um pária do regime republicano e do sistema democrático. A propósito, também configura crime, segundo a Constituição, a associação de caráter paramilitar.

Isso posto, por que o Congresso Nacional, como voz institucional, tem sido tolerante com ele? Ou será que as pedaladas fiscais de Dilma são mais graves do que os cavalos de pau que Bolsonaro dá na democracia?

 

  1. Por que o Supremo Tribunal Federal passa pano para Bolsonaro?

 

O filho Eduardo já disse em palestra que bastam um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal. O Twitter oficial de Bolsonaro, no ano passado, veiculou um vídeo em que o STF era chamado de hiena e apresentado como um animal agressivo fazendo oposição sistemática ao "leão" presidente. "Vamos apoiar nosso presidente até o fim e não atacá-lo", dizia o vídeo. "Já tem a oposição pra fazer isso", tascava a peça, atribuindo aos ministros do STF a alcunha de "oposição".

Fosse a democracia brasileira um sistema de governo no pleno gozo de sua saúde, bastaria a apologia de um torturador como Carlos Alberto Brilhante Ustra para que Bolsonaro fosse interpelado e, no mínimo, advertido pela corte suprema. O que se ouve, ao contrário, é silêncio. Ensurdecedor. A carapuça de supremo acovardado, conforme as palavras de Lula, e de partícipe num acordão nacional, "com o supremo, com tudo", segundo o senador Romero Jucá, vestiu e nunca mais deixará o cocuruto e as mentes desses ministros?

"A harmonia e o respeito mútuo entre os Poderes são pilares do Estado de Direito, independente dos governantes de hoje ou de amanhã", tuitou um protocolar Gilmar Mendes. "Vamos dar um desconto e ser positivos, que o Brasil tem problemas mais sérios", disse o ministro do STF Marco Aurélio Mello. Disse e sumiu.

 

  1. Por que a mídia passa pano para Bolsonaro?

 

A terceira questão que se impõe é voltada ao comportamento da imprensa. Por muito menos, jornalistas de todos os espectros direcionaram sua artilharia contra o então presidente Lula. Hoje, temos um presidente que ofende o conjunto de jornais e jornalistas, destrói a única empresa de alcance nacional dedicada à produção de comunicação pública, repete em voz alta que a Folha de S.Paulo não faz jornalismo e ataca a honra de uma profissional da imprensa. E o que fazem os jornais? Publicam um ou outro editorial inconformado, redigido sob o efeito da indignação, e no dia seguinte voltam a cobrir normalmente o governo e o dia a dia do presidente, enviando repórteres para o cercadinho da infâmia como se não houvesse nada de errado e noticiando tanto os fatos políticos quanto os impropérios de Bolsonaro como se as instituições estivessem funcionando normalmente. Houve risos de colegas no momento em que o presidente ofendeu a jornalista Patrícia Campos Mello. O inaceitável reverbera e ganha proporções cada vez maiores. Quando o Congresso, o Supremo e a mídia vão "cancelar" o presidente?

 

  1. Por que passamos pano para Bolsonaro?

 

Agora imaginemos por um momento o seguinte cenário: algum parlamentar ou bancada no Congresso, ou eventualmente alguém da sociedade civil – Miguel Reale e Janaína Pascoal, por exemplo – protocolam na Câmara dos Deputados um pedido de impeachment de Bolsonaro elencando um ou vários dos crimes de responsabilidade cometidos por ele. A argumentação prevalece e o leão é cassado. Entra o vice Mourão, diretamente da caserna para o Palácio da Alvorada, um militar no poder sem tanques nas ruas nem golpe de Estado. Será que esse medo é o responsável por deixar a população atônita? Ou, pior, o que motiva a ausência absoluta de enfrentamento é a adesão às causas? Uma pulsão que torna parte significativa da população cúmplice do Estado de Exceção desde que nossa bandeira continue verde e amarela, e o PT seja banido da face (plana) da Terra?

Atos de apoio a Jair Bolsonaro estão marcados para o dia 15 em dezenas de cidades. Em comum, a defesa do "mito", sua incorruptibilidade e sua coragem e, principalmente, o apoio incondicional à Justiça de Sérgio Moro e à pauta econômica conduzida por Paulo Guedes. É essa turma, dizem os conservadores festivos, que vai devolver o país aos eixos, com mais emprego, saúde, educação e oportunidades. E uma arminha para todos! Enquanto isso, o que faz a oposição? Publica artigos na Folha de S.Paulo e dirige escavadeiras?

Tenho visto partidos empenhados em debater candidaturas para o pleito municipal de outubro. Freixo terá Benedita da Silva como vice no Rio. Seis pré-candidatos do PT disputam a primazia da indicação em São Paulo. Briga de foice em Salvador para definir quem será a candidata do campo progressista. Enquanto isso, Bolsonaro cogita fechar o Congresso Nacional e o STF. Ou ao menos constrangê-los.

O episódio é insólito e ameaçador. Insólito porque não cabe ao presidente da República supervisionar ou controlar o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. Ao contrário, não é preciso haver parlamentarismo para que, neste país, o parlamento seja responsável por colocar freios e contrapesos à atividade do Executivo. É o Legislativo que autoriza o presidente ou o vice a se ausentar do país por mais de 15 dias. É o Legislativo que aprova intervenção federal e que autoriza o presidente a declarar Guerra. É o Legislativo que fiscaliza e controla os atos do Poder Executivo. Nunca o contrário.

Já o Congresso Nacional, esse foi fechado mais de 15 vezes ao longo da História do Brasil. As mais recentes, todas durante a ditadura, foram autorizadas pelo Ato Institucional número 2, decreto publicado em 1966 e que conferiu ao presidente da República o poder de dissolver o Congresso Nacional. Três recessos sucederam o marco legal: Castello Branco decretou um mês de recesso em 1966, Costa e Silva fechou o congresso em dezembro de 1968, por ocasião do Ato Institucional número 5, e Ernesto Geisel, em 1977, fechou temporariamente o Congresso mais uma vez por ocasião do "Pacote de Abril". Lá se vão quase quarenta e três anos. Para certos presidentes, às vezes bate uma saudade…

 

ERRAMOS: Uma versão anterior afirmava incorretamente que Eduardo Bolsonaro declarara que um cabo e um soldado seriam suficientes para fechar o Supremo Tribunal Militar (que nem sequer existe). Também dizia que o princípio de impessoalidade na administração pública é garantido pelo artigo 34º da Constituição Federal, quando o correto é o artigo 37º. As duas informações já foram corrigidas.

Sobre o Autor

Camilo Vannuchi é jornalista e escritor. Atua nas áreas de direitos humanos e direito à comunicação. Foi membro da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). É mestre e doutorando em Ciências da Comunicação e integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, filiado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi repórter e editor nas revistas IstoÉ e Época São Paulo e colunista no site da Carta Capital. Atualmente, trabalha na elaboração de um livro-reportagem sobre a vala clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, onde foram ocultadas mais de mil ossadas durante a ditadura militar.

Sobre o Blog

Espaço dedicado a ampliar o debate sobre direito à memória e à verdade por meio da publicação de notícias e análises relacionadas à ditadura militar (1964-1985) e à justiça de transição. Episódios recentes que inspirem à denúncia de violações de direitos, à crítica do autoritarismo ou à defesa da democracia também são assuntos deste blog.