Vai sobrar professor? Serão todos heróis e heroínas?
Leio com preocupação reportagem da Folha de S.Paulo, assinada pela jornalista Angela Pinho, sobre o aumento do número de pedidos de demissão e de afastamento entre professores da Universidade de São Paulo. Em três anos, de 2017 a 2019, o número de docentes desligados por iniciativa própria mais que dobrou em relação aos três anos anteriores, de 2014 a 2016. A notícia preocupa tanto pelo diagnóstico quanto pelo prognóstico. Se, na origem, ela revela uma situação de profundo abandono e descaso na maior universidade do país, ao mesmo tempo descortina um futuro ainda mais ameaçador, com menos docentes e, aparentemente, nenhuma preocupação em reverter essas perdas ou solucionar suas razões. Será que vai sobrar algum?
Em algumas semanas, depositarei minha tese de doutorado na USP. Se tudo correr bem, terei o grau de doutor antes do fim do semestre. Hoje, dedicado a concluir a pesquisa que desenvolvo desde 2016, estou apartado das salas de aula. Ainda assim, a docência é, de certa forma, a militância em que me vejo imerso no futuro próximo. Ou pelo menos uma das trincheiras em que desejo militar (militar, pra mim, continua sendo verbo).
Ao escrever a palavra trincheira, tenho a sensação de que há muito tempo ela não é tão adequada quanto agora para se referir ao ensino superior público no Brasil. É claro que professoras e professores de escola pública, de ensino fundamental e médio, convivem com violências de diversos tipos, em todo o país, como manchetes de jornais insistem em nos lembrar com uma frequência aflitiva (e vergonhosa). Mas, no ensino superior, não me lembro de presenciar um desmonte como o atual. Ok, tenho 40 anos e admito que, no passado, possam ter existido períodos ainda mais terríveis, mas não creio que tenha havido algo parecido desde o governo Sarney. Tampouco me recordo de tamanha ausência de perspectiva, de valorização, de utopia, de recursos humanos, de recursos em geral.
É revoltante perceber o que estão fazendo com nossas universidades. É revoltante ver como operam os responsáveis pela Educação na administração atual e vislumbrar os efeitos perversos que esse descalabro causa e causará na ciência, no conhecimento, na formação das próximas gerações.
A USP, hoje, é parecida com um enorme navio carente de manutenção, em que faltam tripulantes, os instrumentos de navegação começam a ficar obsoletos e no qual marujos sentem-se cansados de alertar o comandante, cobrar providências e fazer tudo o que está a seu alcance para evitar o colapso. Com as poucas e enferrujadas ferramentas que ainda lhes restam.
Fora desse transatlântico, o oceano turbulento está coalhado de pequenas e médias embarcações muito mais frágeis do que ele, algumas à deriva, outras sem tripulação – nem botes salva-vidas. No caso específico das faculdades de comunicação social, a situação é gravíssima. As demissões, o enxugamento no quadro de funcionários, a precarização, o acúmulo de funções, aulas e mais aulas sem tempo remunerado para o preparo delas nem para que o docente consiga se atualizar e melhor desenvolver suas capacidades, tudo isso coopera para a consolidação de um jornalismo mais imediatista, melhor treinado para a convergência de mídias e talvez para a assessoria de imprensa, mas carente de profundidade teórica e vivência empírica. Quando isso não ocorre, de quem costuma ser o mérito?
Professoras e professores têm se tornado heroínas e heróis, dentro e fora da sala de aula. Guerreiras e guerreiros com salários atrasados, sem estabilidade ou benefícios, agredidos diuturnamente por representantes – e apoiadores – de um governo obtuso e violento, que lhes atribuem a pecha de doutrinadores e que têm como único projeto de país promover um futuro com menos livros, menos debates, menos pesquisa, menos pensamento crítico e menos coisa escrita. Definitivamente, não era para ser assim.
Em quatro anos de doutorado, uma das coisas que aprendi, e agradeço imensamente à USP e à Capes por isso, é que não há democracia sem democratização da informação e do conhecimento. Não há democracia sem educação pública de qualidade. O que fizeram – ou fizemos – de nós?
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