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Camilo Vannuchi

Bolsonaro pode anistiar quem cometeu crime de desaparecimento forçado?

Camilo Vannuchi

16/01/2020 11h05

Jonas era integrante de uma organização clandestina de oposição à ditadura.

Não pegava em armas, mas rodava panfletos no mimeógrafo e, principalmente, colava cartazes e pichava muros pelas ruas do centro. Ditadura nunca mais. Só o povo armado derruba a ditadura.

Um dia, derrubaram não exatamente a ditadura, mas a porta de sua casa.

— Tem mandado? — Jonas quis saber quando viu quatro agentes arrombarem a porta num chute. Entraram sem pedir licença e começaram a revirar prateleiras, abrir os livros e arremessá-los no chão.

— Tá aqui o mandado — respondeu um dos invasores, mal-encarado, tocando o cabo da pistola na cintura. — Você vai com a gente.

Jonas entrou numa perua veraneio, sem identificação, e saiu da vida para entrar pra história.

 

Sebastião era pedreiro. Morava no Rio, na Rocinha, comunidade com 70 mil habitantes, a maior favela do país. Filho de uma empregada doméstica e um motorista de caminhão, Sebastião tinha onze irmãos. Pareciam os 12 apóstolos de Cristo, mas sem Cristo por perto para confortar ou multiplicar os pães. Sebastião foi barrado numa blitz a caminho do barraco que habitava junto com os filhos.

— Tu é da facção que eu sei — acusou um policial.

— Sou não, seu policial, deus me livre — Sebastião tentou argumentar. — Sou trabalhador, faço parede, tenho família.

— Tu vem comigo.

— Faz isso, não. Pelo amor de deus.

Sebastião nunca mais foi visto na Rocinha. Virou estatística.

 

Jonas e Sebastião são personagens de ficção. Mas existiram. Ainda existem. E são muitos. Onde está o corpo de Rubens Paiva? O que fizeram com Ana Kucinski, Stuart Angel, Honestino Guimarães? Cadê o Amarildo? Ninguém sabe, ninguém viu.

 

O desaparecimento forçado é descrito no direito internacional como um crime de lesa humanidade e uma das mais graves violações de direitos humanos. Ele não significa necessariamente morte. Há desaparecimento forçado sempre que uma autoridade, uma instância do Estado, coloca alguém sob sua tutela de forma extraoficial, escondida. Na ditadura, o sistema de repressão – tanto sua face oficial, como o Dops, quanto sua face paralela, como a Operação Bandeirante – usou amplamente este expediente. Estudantes, militantes, sindicalistas e, muitas vezes, pessoas que nada tinham a ver com resistência à ditadura, eram sequestradas e conduzidas, encapuzadas para que não soubessem o caminho, a centros clandestinos de tortura. Por dias ou semanas, policiais, delegados, militares e médicos participavam de interrogatórios intermináveis, sem que houvesse registro daquela prisão e sem que ninguém da família ficasse sabendo. Pais e mães, em desespero, consultavam a Secretaria de Segurança Pública, percorriam IMLs e delegacias, chegavam a bater à porta do Dops ou do DOI-Codi, e em todos os lugares respondiam que não havia ninguém ali com esse nome. Às vezes, havia.

A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou em dezembro de 2006 a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado. Em seu artigo 2º, o desaparecimento forçado é descrito como "a prisão, o sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei". O Brasil é signatário da Convenção desde 2007. Em 11 de maio de 2016, a então presidenta da República Dilma Rousseff publicou o decreto nº 8.767 por meio do qual o país promulgava a convenção da ONU, assumindo suas normas como lei. O link do decreto traz também a íntegra da convenção, em português.

Enquanto o Artigo 1º determina que nenhuma pessoa será submetida a desaparecimento e que nenhuma circunstância excepcional, nem mesmo a guerra, poderá ser invocada como justificativa para o desaparecimento forçado, o Artigo 6º determina que o Estado tomará as medidas necessárias para responsabilizar penalmente "toda pessoa que cometa, ordene, solicite ou induza a prática de um desaparecimento forçado, tente praticá-lo, seja cúmplice ou partícipe do ato".

Soube na última quarta-feira, dia 15, por meio da coluna do Jamil Chade no UOL, que o governo Bolsonaro encaminhou ofício à ONU no ano passado afirmando que, no Brasil, episódios de desaparecimento forçado ocorridos durante a ditadura militar estariam perdoados pela Lei da Anistia. Nenhuma palavra sobre autoria ou responsabilidade do Estado na prática desses crimes. Somente subterfúgios para evitar que os demais estados signatários sabatinem o Brasil e apresentam, como é provável, cobranças efetivas de punição e reparação.

Cinco anos após ratificar a convenção da ONU, o que o Brasil realmente fez para punir quem praticou ou pratica o crime de desaparecimento forçado? Quais os instrumentos elaborados ou previstos para isso? Como erradicar o desaparecimento forçado, ainda recorrente no dia a dia da polícia militar, a mesma corporação que reincide no enquadro, no escracho e em práticas amplamente proibidas, como o uso de farda sem identificação e a repressão autoritária, nas UPP da Rocinha ao baile funk de Paraisópolis?

Buscar maneiras de anistiar crimes não passíveis de anistia segundo o direito internacional, como a tortura, o desaparecimento forçado e a ocultação de cadáveres, é o mesmo que firmar um salvo conduto para que as autoridades de hoje possam repetir os mesmos crimes. "Se em 1970 nossos pares foram perdoados, por que não seremos perdoados agora, 50 anos depois?", sugere a lógica oportunista e óbvia de quem exerce o monopólio da opressão. São os crimes da atualidade, os crimes da suposta democracia, que devem servir de farol para que "explicações" como as encaminhadas à ONU pelo Itamaraty sejam rechaçadas. Jamil Chade deve voltar ao assunto nos próximos dias e abordar justamente o papel atual das polícias nos desaparecimentos. É preciso estar atento. E forte.

Sobre o Autor

Camilo Vannuchi é jornalista e escritor. Atua nas áreas de direitos humanos e direito à comunicação. Foi membro da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). É mestre e doutorando em Ciências da Comunicação e integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, filiado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi repórter e editor nas revistas IstoÉ e Época São Paulo e colunista no site da Carta Capital. Atualmente, trabalha na elaboração de um livro-reportagem sobre a vala clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, onde foram ocultadas mais de mil ossadas durante a ditadura militar.

Sobre o Blog

Espaço dedicado a ampliar o debate sobre direito à memória e à verdade por meio da publicação de notícias e análises relacionadas à ditadura militar (1964-1985) e à justiça de transição. Episódios recentes que inspirem à denúncia de violações de direitos, à crítica do autoritarismo ou à defesa da democracia também são assuntos deste blog.