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Camilo Vannuchi

O maior problema da censura é a conivência dos que a aplaudem

Camilo Vannuchi

11/01/2020 22h47

Anos atrás, o jornalista Paulo César de Araújo publicou uma extensa biografia de Roberto Carlos após 16 anos de pesquisa sobre a vida e a obra do Rei. Em Roberto Carlos em detalhes (Ed. Planeta, 2006), elogiado pela crítica e pelo público, Araújo não expôs segredos do cantor nem informações obtidas por meios escusos ou narradas de forma desrespeitosa. É verdade que, no livro, o autor tenha abordado episódios e temas delicados da trajetória de Roberto, como o acidente que lhe amputou uma perna ou a influência do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) em seu dia a dia, mas nada que o próprio biografado, de quem Araújo é fã, já não tivesse constado em entrevistas. Fato é que, em maio de 2007, menos de seis meses após o lançamento do livro, a Justiça determinou sua retirada de circulação e o confisco dos quase 11 mil exemplares que restavam no estoque da editora.

A decisão se baseou no artigo 20 do Código Civil, vigente desde 2002, que prevê a possibilidade de proibir "exposição ou utilização da imagem de uma pessoa", salvo em caso de autorização prévia, "se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais". O livro de Araújo, como a maior parte do mercado editorial, se destinava a fins comerciais. E ele não tinha uma autorização prévia de Roberto. Em um processo judicial que se estendeu por anos, entre despachos e recursos, os advogados do cantor acusavam o autor de atingir a honra de seu cliente ou, no mínimo, invadir sua privacidade. O resultado foi a censura. O Rei usava seu poder monárquico, com o perdão do trocadilho, para baixar o absolutismo sobre o jornalismo e a literatura. O recado era o seguinte: sem minha autorização, não haverá livro sobre mim.

A disputa judicial abriu precedente e causou polêmica. Em 2013, artistas como Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil e Djavan se juntaram no grupo Procure Saber, presidido pela produtora Paula Lavigne, e passaram a defender uma bandeira perigosa: a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias. Uma sirene soou no mundo das comunicações. Biografia é, grosso modo, um livro-reportagem que tem como foco uma pessoa. Trata-se, portanto, de um gênero jornalístico. Uma biografia pode ser publicada num jornal, numa revista, num site ou em livro. Um produto análogo às biografias é o chamado perfil, modalidade em que o autor, em geral, prescinde de narrar infância e adolescência de determinada pessoa para se concentrar no momento atual: onde vive, o que pensa, quais são seus hábitos, que lugares frequenta, como exerce sua atividade principal. Exigir autorização prévia de biografias é uma ingerência equivalente a exigir aval do Lula ou do Bolsonaro para publicar notícias sobre eles. Daí o desconforto que a campanha promovida pela Procure Saber causou em jornalistas, escritores e biógrafos à época. Como reação, a Associação Nacional de Editores de Livros (Anel) entrou na Justiça com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para delimitar a interpretação do tal artigo 20 a fim de garantir o direito de publicar biografias sem as bênçãos da pessoa biografada. Somente em 2017 o Supremo Tribunal Federal votou pela inconstitucionalidade e devolveu às editoras a liberdade para publicar biografias sem o aval de ninguém.

Em outro episódio notório, o jornal O Estado de S. Paulo foi proibido por 3.327 dias, entre 2009 e 2018, de publicar reportagens sobre a operação Boi Barrica, escândalo que envolvia a contratação de parentes e afilhados políticos do então senador José Sarney por meio de atos secretos assinados por ele durante seu mandato como presidente do Senado.

Quando um juiz decide retirar do ar um vídeo como o especial de Natal do Porta dos Fundos, quase treze anos após a proibição do livro de Paulo César de Araújo, sua decisão traz de volta os ecos do autoritarismo que se abateu sobre os meios de comunicação após o AI-5, há mais de meio século, quando também se podia jogar bomba em redações de jornais sem que nada acontecesse com os agressores. Traz de volta as sombras de um período em que havia censores dentro dos jornais e revela a naturalidade — e a desfaçatez — com que o instrumento da censura pode ser empregado sempre que algo incomoda.

O que esses episódios têm em comum, além do recurso fácil e naturalizado à censura oficial para tirar do ar (ou das bancas, ou das prateleiras) o que incomoda, é o fato de produzirem não somente reações negativas, mas também reações positivas. O pior da censura é o apoio que gestos autoritários recebem de setores da sociedade. O pior da censura é sua consagração. Para esse Brasil, não se pode mexer com Deus nem com Roberto Carlos, o que é praticamente um pleonasmo. Neste sentido, é especialmente grave que tantos artistas tenham se somado a Roberto Carlos na campanha pela censura das biografias. É especialmente grave, da mesma forma, que tantas pessoas de bem, em 2020, considerem correta a retirada do ar do especial de Natal do Porta dos Fundos, como se a censura fosse um exemplo razoável e louvável de boa aplicação da lei. Programas humorísticos são tolerados desde que não passem dos limites, seja eles quais forem, o que em geral é interpretado de acordo com padrões profundamente pessoais.

O Jesus gay de Gregório Duvivier irritou os católicos que não toleram a homossexualidade, os cristãos que entendem a homossexualidade como erro, vergonha, vício. Para esses, talvez não houvesse nada de errado se a tela mostrasse um Jesus de arma na mão. Possivelmente, reagiriam com a mesma fúria se a direção tivesse optado por um Jesus negro, por exemplo, tão distante da realidade quanto o Jesus de olhos claros e nariz aquilino que aparece esculpido ou pintado na maioria das igrejas. Em Portugal, trinta anos atrás, José Saramago fez inimigos e foi duramente criticado ao publicar O Evangelho segundo Jesus Cristo, "desrecomendado" pelo ministério da Cultura de seu país por ser "altamente polêmico". E olha que, ali, Jesus era casado com Maria Madalena, e não com um homem qualquer. Pensa no sacrilégio!

Censurar o Porta dos Fundos após aplaudir, por muitos anos, o pai-de-santo gay de Chico Anísio é sinal da seletividade dessa gente. Censurar o Porta dos Fundos como se não tivesse postado nas redes sociais a frase "eu sou Charlie" quando humoristas do Charlie Hebdo foram assassinados por satirizar Maomé e dogmas da fé islâmica diz muito sobre o caráter — ou a ausência dele — dessa indignação. É como se tivéssemos aval para satirizar a religião dos outros, nunca a nossa. A orientação sexual dos outros, nunca a nossa. A cor dos outros, nunca a nossa. Os hábitos e os costumes de qualquer minoria, nunca da maioria.

A liberdade de expressão, prevista no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, ainda em vigor, não deve ser encarada como um direito absoluto, total e ilimitado. Ali mesmo, no inciso IV do artigo 5º, o constituinte previu uma primeira limitação para essa liberdade. "É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato", diz o texto. Hoje, nosso arcabouço legal, civil ou criminal, entende que existem outros limites à livre manifestação do pensamento, como o discurso de ódio, a incitação à violência, a apologia de crime ou criminoso, o racismo e, mais recentemente, a "LGBTfobia", equiparada ao crime de racismo por decisão do STF do ano passado. Nada disso aparece no especial de Natal do Porta dos Fundos, tampouco qualquer tentativa de restringir a liberdade de culto ou de associação religiosa, o que implicaria, se fosse o caso, desrespeito a outro inciso do mesmo artigo 5º da Constituição.

Sátira não pode ser equiparado a crime de ódio. Julgar que um especial de humor de 45 minutos representa grave ameaça a uma fé professada há mais de 2 mil anos, erigida sobre dogmas robustos e comandada pelo Vaticano, a instância religiosa mais poderosa do mundo, chega a soar como destempero ou falso-testemunho. Foi exatamente neste sentido o entendimento do ministro Dias Toffoli, que deferiu liminar na última quinta-feira (9) derrubando a censura ao Porta dos Fundos imposta um dia antes pelo desembargador Benedicto Abicair, do Rio de Janeiro, e garantido o direito de exibição pela Netflix. Antes dele, o pedido de censura protocolado pela Associação Cultural Dom Bosco, cristã, havia sido negado em primeira instância, mas a entidade entrou com recurso junto ao Tribunal de Justiça do Rio, onde foi aceito por Abicair. Hoje, enquanto publico esta coluna, o especial segue disponível na plataforma de streaming. Sabe-se lá até quando.

Mire, veja: o mais importante e bonito da garantia constitucional à liberdade de expressão, sob a qual se filia a liberdade de imprensa, é isso: ela não existe para garantir que a voz oficial seja perpetrada, que a maioria se expresse, que elogios sejam feitos ou que matérias positivas ou laudatórias sejam publicadas sobre determinado governante ou pessoa pública. A liberdade de expressão existe para que se publique o contraditório, a crítica, a denúncia, o escândalo, o puxão de orelha… e também a sátira. Ela existe para que se possa divergir e transgredir. Quando nos é tirado o direito à liberdade de expressão, os censurados somos nós. O que o Estado censura não é somente a produtora ou o canal que perde o direito de exibir o filme. O que o Estado censura, quando o faz, é também o direito do espectador de ter acesso àquele conteúdo. A liberdade de expressão existe não somente para beneficiar aquele que se expressa, mas também a coletividade, à qual se deve garantir o direito à informação, à arte, à literatura — mesmo àquela que incomoda.

Sobre o Autor

Camilo Vannuchi é jornalista e escritor. Atua nas áreas de direitos humanos e direito à comunicação. Foi membro da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). É mestre e doutorando em Ciências da Comunicação e integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, filiado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi repórter e editor nas revistas IstoÉ e Época São Paulo e colunista no site da Carta Capital. Atualmente, trabalha na elaboração de um livro-reportagem sobre a vala clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, onde foram ocultadas mais de mil ossadas durante a ditadura militar.

Sobre o Blog

Espaço dedicado a ampliar o debate sobre direito à memória e à verdade por meio da publicação de notícias e análises relacionadas à ditadura militar (1964-1985) e à justiça de transição. Episódios recentes que inspirem à denúncia de violações de direitos, à crítica do autoritarismo ou à defesa da democracia também são assuntos deste blog.