Topo

Camilo Vannuchi

Margarida Genevois ganha Prêmio D. Paulo Evaristo Arns de Direitos Humanos

Camilo Vannuchi

12/12/2019 00h09

Margarida Genevois tem 96 anos de idade e uma invejável disposição para a resistência — resistência justa e pacífica, como apregoa o título da comissão criada por Dom Paulo Evaristo Arns em 1972, a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, que Margarida ajudou a consolidar e presidiu por duas ocasiões.

Dois meses atrás, deixou sua casa para ir ao presídio feminino de Santana, onde visitou Preta Ferreira e Ednalva Franco, mulheres, ativistas pelo direito à moradia, presas injustamente 100 dias antes. Duas amigas de longa data a acompanharam na visita: as professoras Maria Victoria Benevides, da Faculdade de Educação da USP, e Maria Hermínia Tavares de Almeida, do Instituto de Relações Internacionais da USP e do Cebrap. Desde o início do ano, as três são colegas na Comissão Arns, que tem Margarida como presidente de honra. "Chegando lá, tinha uma escada que quase me fez desistir; a mim, que sou 20 anos mais nova", diz Maria Victoria. "Margarida nem se importou. Subiu na frente, rapidinho".

Nesta quinta-feira, 12 de dezembro, Margarida tem outro compromisso importante com a pauta dos direitos humanos. Ela estará às 19h na Praça das Artes, no centro de São Paulo, para receber o Prêmio Dom Paulo Evaristo Arns de Direitos Humanos, distinção criada pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e oferecida anualmente desde 2014. Nas edições anteriores, o troféu foi entregue a Frei Betto, Luiza Erundina, Padre Jaime Crowe, Mara Gabrilli e Paulo Pedrini. Na mesma noite, a Prefeitura de São Paulo entregará o Prêmio de Direito à Memória e à Verdade Alceri Maria Gomes da Silva à procuradora da República Eugênia Gonzaga, que até julho presidia a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e duas menções honrosas, para o ex-deputado federal Jean Wyllys e para a Ponte Jornalismo, canal de notícias sobre segurança pública, justiça e direitos humanos.

O troféu Dom Paulo não é dos mais leves, dizem. Mas isso não será problema para a vigorosa Margarida Genevois. Há menos de um mês, Margarida foi homenageada com outro prêmio, igualmente simbólico, inspirado nos mesmos princípios e motivado pela mesma trajetória: o XXXV Prêmio de Direitos Humanos da OAB São Paulo – Franz de Castro Holzwarth. Margarida esteve lá e discursou, com a inabalável coragem e a irreversível sensibilidade que marcou sua trajetória. "Hoje, depois de tantos anos, e de governos democráticos que apoiaram os planos nacionais de Direitos Humanos, assim como o Direito à Verdade e à Memória, vivemos, estarrecidos, tempos cruéis de exaltação da violência e da redução drástica dos direitos fundamentais, sobretudo dos já muito vulneráveis", anotou. "Um retrocesso terrível, uma negação de nossa Constituição e dos Pactos Internacionais de Direitos, todos assinados pelo Brasil".

 

Vivemos um clima pesado de ódio, de descrença, de desesperança. Um clima de ódio que não existia nem mesmo na ditadura
(Margarida Genevois, discurso na OAB-SP em 27 de novembro de 2019)

 

Quando se escuta o nome de Margarida, a primeira coisa que vem à mente é seu engajamento — aguerrido, generoso e permanente — junto à Comissão Justiça e Paz de São Paulo. Margarida presidiu a CJP de julho de 1982 a dezembro de 1986 e novamente entre dezembro de 1990 e setembro de 1994. Seu envolvimento com a Comissão, no entanto, remonta aos primeiros anos, entre 1973 e 1974, quando Margarida se aproximou do grupo e passou a assessorá-lo, como uma espécie de secretária, primeiro uma vez por semana, depois duas.

 

Ela soube unir a Comissão Justiça e Paz e soube lhe dar um sabor patriótico e heroico, que dura até nossos dias
(Dom Paulo Evaristo Arns, em 2003, entrevistado para o livro Justiça e Paz, de Antônio Carlos Ribeiro Fester)

 

A Comissão funcionava na casa de Dom Paulo, no Sumaré, com total discrição, como se fosse uma organização clandestina. Ali, alguns dos melhores juristas do país se reuniam para prestar solidariedade e oferecer seus serviços a familiares de presos ou desaparecidos políticos, denunciar tortura, investigar suspeitas de execuções e encontrar formas de resistir à truculência e ao autoritarismo. Era preciso ser discreto e cuidadoso para não fustigar a repressão nem despertar gestos de retaliação. Margarida atendia os familiares, sobretudo mães, que procuravam a CJP, normalmente com pedidos de ajuda e histórias de violações de direitos — muitas delas, terríveis. Margarida ouvia, se emocionava, se indignava e dava encaminhamento. Nenhum caso era deixado para trás ou ficava pelo caminho.

 

Quando comecei a ver os detalhes do que se passava nas prisões, voltava apavorada, nem dormia direito de tão angustiada, e os jornais não contavam nada, evidentemente
(Margarida Genevois, em entrevista feita em 2000 para o livro Fé na Luta, de Maria Victoria Benevides)

 

Em entrevista à Conectas Direitos Humanos, em 2013, Margarida contou que chegavam denúncias seríssimas de tortura e desaparecimento, muitas vezes de estudantes, prática totalmente desconhecida por pessoas do convívio de Margarida, de sua classe social. "Imagina que vão fazer uma coisa dessas com os estudantes", diziam os mais abastados e os que se informavam somente pelos grandes jornais oficiais. Faziam. E continuaram fazendo. "Foi um trabalho muito dolorido. O que a gente ouvia, olha. Às vezes não podia fazer nada, só abraçar e chorar junto".

Um dos instrumentos mais relevantes naquele momento, e no qual Margarida exerceu grande protagonismo, foi a denúncia internacional. "A gente denunciava na Europa e isso inibia um pouco os militares, que queriam que o Brasil tivesse uma boa imagem no Exterior", contou, na mesma entrevista. Margarida viajava com frequência à Franca e, por isso, começou a atuar como uma espécie de embaixadora da CJP no exterior. Foi a primeira mulher a representar oficialmente um arcebispo em encontros ou reuniões internacionais, o que provocava espanto, sobretudo tratando-se de uma mulher que nem era freira ou irmã.

 

Margarida Genevois foi a alma da Comissão Justiça e Paz, a musa dos Direitos Humanos. E hoje, quase centenária continua a ser inspiradora na nossa luta. Comparece a todas as reuniões e vai à luta denunciando, pregando e amando
(José Carlos Dias, advogado, presidente da Comissão Arns, ex-presidente da CJP e ex-ministro de Direitos Humanos)

 

Margarida Genevois, reconhecida por muitos como "a alma" da CJP, nasceu Margarida Bulhões Pedreira, em março de 1923, filha do eminente advogado criminalista Mario Bulhões Pedreira e neta do desembargador José Luís de Bulhões Pedreira. De família tradicionalíssima — e abastada —, Margarida estudou em colégios católicos, no Sion e no Sacré Coeur, e cursou biblioteconomia na Biblioteca Nacional. Em seguida, fez curso para atuar como enfermeira de guerra na Escola Ana Nery de Enfermagem, ligada à Universidade do Rio de Janeiro. Numa viagem a Ouro Preto, conheceu o marido, o engenheiro francês Lucien Eugène Antonin Genevois, diretor da Rhodia no Brasil. Casaram-se em 1944 e mudaram-se para uma fazenda da empresa em Campinas, onde a Rhodia cultivava cana de açúcar para, em tempos de guerra mundial, produzir o próprio etanol. Margarida viveu na fazenda por 22 anos. Nesse período, o marido se tornou cônsul honorário da França na cidade. Era também membro do Rotary. Margarida chegou a presidir uma associação de mulheres rotarianas, experiência que ela mais tarde chamaria de "conservadora".

Na fazenda, Margarida tomou contato com as precárias condições de vida das famílias de agricultores. A mortalidade infantil era altíssima entre os filhos dos colonos, sobretudo nas primeiras semanas de vida, e também entre mulheres logo após o parto. Ajudou a orientar as mulheres no puerpério e montou um centro de puericultura, atenção integral ao recém-nascido, que acabou progredindo até virar uma creche. Chegou a salvar vidas, unindo o que havia aprendido no curso de enfermagem com fundamentos de nutrição e a condução profissional do pediatra de seus filhos (três meninas e um menino: Marie Louise, Rose Marie, Anne Marie e Bernard).

Quando o casal se mudou para São Paulo, no final dos anos 1960, Margarida já estava visceralmente ligada aos direitos humanos, à justiça social e às responsabilidades da sociedade civil na luta contra a desigualdade e por direitos sociais. Aos 45 anos, foi cursar sociologia na Escola de Sociologia e Política, onde teve aulas com Florestan Fernandes.

Nascida no Rio e após 22 anos vivendo na fazenda, Margarida não tinha amigos na capital paulista. Uma das primeiras pessoas que conheceu foi o advogado Fábio Konder Comparato, casado com Monique, francesa como Lucien. Desse encontro surgiu o convite para participar da Comissão Justiça e Paz. Fundada em 1972, a CJP tinha um estatuto no qual constava uma versão vintage das atuais políticas de cota: seus membros tinham de incluir pelo menos uma mulher, um estudante e um operário. Na prática, o estudante de direito Luiz Antônio Alves de Souza e o operário Waldemar Rossi já haviam preenchido suas vagas, mas Dom Paulo relatava dificuldade em encontrar mulheres dispostas ao desafio. "Acho que tenho um nome para você", Comparato contou ao arcebispo.

Margarida assumiria a presidência da entidade em 1982, dez anos após sua fundação. Antes dela, três advogados presidiram a Comissão: Dalmo Dallari, José Carlos Dias e José Gregori. Todos três teriam ampla atuação na vida pública: Dallari foi secretário municipal de assuntos jurídicos na gestão de Luiza Erundina; Dias foi secretário estadual de Justiça no governo de Franco Montoro e ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso; Gregori foi secretário nacional de Direitos Humanos e também ministro da Justiça de FHC. Nas últimas décadas, passaram pela presidência da CJP Marco Antônio Rodrigues Barbosa, Antonio Carlos Malheiros, Luiz Antônio Alves de Souza, Josephina Cabariça, Guilherme Amorim Campos da Silva e, desde a morte do Cardeal Arns, Antonio Funari Filho.

 

Uma das pessoas mais extraordinárias que eu conheci na vida. De uma dedicação impar e uma visão holística sobre a proteção de quem mais precisa, principalmente vítimas da desigualdade e da violência
(Marco Antônio Rodrigues Barbosa, advogado, ex-presidente da CJP e ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos)

 

A justa homenagem a Margarida Genevois chega em boa hora. Nos estertores de um ano em que um deputado progressista precisou renunciar ao mandato e deixar o país, em que a perseguição à imprensa voltou com carga total, em que houve censura no cinema, em que as prisões políticas e injustas se proliferaram, em que membros dos esquadrões da morte, rebatizados de milícias, têm livre trânsito no Palácio do Planalto, em que a memória dos desaparecidos políticos é desrespeitada pelo chefe do Executivo federal e em que a hipótese de um novo AI-5 foi amplamente ventilada no alto escalão do Governo, homenagear Margarida é uma forma de nos reconciliar com a ética e com a humanidade. A trajetória de Margarida nos ensina, também, a estreitar os laços entre tradição e ousadia, igreja e direitos humanos, sofisticação e humildade, quando muitos insistem em tratar desses elementos como antônimos, como fatores inconciliáveis.

Margarida ensina a perseverar, e a fazer mais do que nos acreditamos capazes. Com as ferramentas de que dispomos. "Tem tanta coisa para fazer, difícil saber por onde começar", constatou Margarida na entrevista à Conectas, seis anos atrás. "Mas eu acho que a gente não deve desistir. Continuar sempre, em frente, mesmo que o resultado seja pouco", arrematou. Simples assim.

 

> O blogueiro entrevistou Maria Victoria Benevides e Marco Antônio Barbosa, obteve um depoimento de José Carlos Dias e consultou os livros Fé na Luta, de Maria Victoria Benevides, e Justiça e Paz, de Antônio Carlos Ribeiro Fester, sobre a CJP.

 

Sobre o Autor

Camilo Vannuchi é jornalista e escritor. Atua nas áreas de direitos humanos e direito à comunicação. Foi membro da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). É mestre e doutorando em Ciências da Comunicação e integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, filiado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi repórter e editor nas revistas IstoÉ e Época São Paulo e colunista no site da Carta Capital. Atualmente, trabalha na elaboração de um livro-reportagem sobre a vala clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, onde foram ocultadas mais de mil ossadas durante a ditadura militar.

Sobre o Blog

Espaço dedicado a ampliar o debate sobre direito à memória e à verdade por meio da publicação de notícias e análises relacionadas à ditadura militar (1964-1985) e à justiça de transição. Episódios recentes que inspirem à denúncia de violações de direitos, à crítica do autoritarismo ou à defesa da democracia também são assuntos deste blog.