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Camilo Vannuchi

Lula já foi condenado pela Lei de Segurança Nacional

Camilo Vannuchi

14/11/2019 07h22

Foi em 1980. O ex-presidente Lula tinha 34 anos e havia acabado de fundar o PT. Presidia o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema e ia às assembleias com uma camiseta estampada com um desenho feito por Laerte. Era o João Ferrador, personagem do jornal sindical Tribuna Metalúrgica, com sua habitual cara de poucos amigos, mãos enfiadas nos bolsos do macacão e um balão onde se lia: "hoje eu não tou bom!".

Lula, presidente do sindicato dos metalúrgicos, reúne 100 mil trabalhadores em assembléia no estádio de futebol da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, em 1979

Lula também tinha o costume de aparecer carrancudo nos jornais da época. Reclamava do ministro do Planejamento Delfim Netto, metia o pau no ministro do Trabalho Murilo Macedo, e fazia questão de alertar "as classes dirigentes" de que "a categoria" estava disposta a radicalizar na negociação salarial daquele ano. A categoria, no caso, era o grupo de trabalhadores formado pelos metalúrgicos do ABC Paulista, os peões que trabalhavam em fábricas como Scania, Ford, Volks e Mercedes e que, desde 1978, chacoalhavam a opinião pública com as maiores greves já vistas no país.

Não existia lulinha paz e amor naquele tempo. O que existia era um líder popular em ascensão, capaz de reunir mais de 100 mil trabalhadores numa assembleia campal.

 

A greve

Em 1º de abril de 1980, a greve foi decretada, paralisando quase 200 mil trabalhadores. Reivindicavam redução da jornada de trabalho de 48 para 40 horas semanais, reajuste salarial de 15% (as empresas ofereciam 3%) e correção trimestral para conter a perda de poder de compra provocada pela inflação (desde o ano anterior, a correção era semestral).

Lula organizava o movimento e orientava o Carnaval. Botava o bloco na rua e explicava, ao microfone, que a categoria tinha duas alternativas: retomar o trabalho sem ver atendida nenhuma reivindicação ou esticar a corda até onde ela aguentasse.

No dia 14 de abril de 1980, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) decretou a ilegalidade da greve, apontou motivação política e acusou o sindicato de insuflar a desordem e incitar a população contra o governo. Os dirigentes não recuaram. Tampouco os trabalhadores. Um pedido de prisão de Lula era iminente. No dia 18, com base na decisão do TRT, foi decretada intervenção no sindicato e destituição da diretoria.

 

A prisão

Lula voltou para casa acabrunhado, macambúzio, igualzinho ao João Ferrador. "Hoje eu não tou bom!". Uma perua veraneio do DOPS, sem identificação, rondava seu endereço desde o início do mês. O dominicano Frei Betto, da pastoral operária, e o deputado estadual Geraldo Siqueira, eleito pelo MDB e em processo de transição para o PT, fundado dois meses antes, estavam hospedados em sua casa.

Lula foi dormir depois das 2h da madrugada. Às 6h30 da manhã do dia 19 de abril, um sábado, agentes do DOPS bateram à sua porta e o levaram preso.

Seguiram-se 31 dias de prisão, juntamente com outros 12 sindicalistas.

Preso por 31 dias no DOPS de São Paulo entre abril e maio de 1980, a foto de Lula está entre os documentos disponíveis para consulta no Arquivo Público do Estado de São Paulo

Segundo seu prontuário, disponível para consulta no Arquivo Público do Estado de São Paulo sob o número 149.689, Lula era acusado de incitar os "trabalhadores dessa categoria numa greve ilegal, desrespeitando pronunciamento judiciário, atacando juízes vogais desse Tribunal do Trabalho, chamando-os de corruptos, atacando com violência o Ministro do Trabalho, bem como o próprio Governo Federal como instituição, e finalmente causando intranquilidade para a paz social, com agitação e 'piquetes' violentos".

Em resumo: Lula violara os incisos II e III do Artigo 36 da Lei de Segurança Nacional.

Lula é fichado no DOPS após sua primeira prisão, em 19 de abril de 1980

 

No detalhe, o motivo da detenção de Lula: Lei de Segurança Nacional, a LSN

Lula, Benedito Marcílio e outros sindicalistas são indiciados pelo Art. 36 da Lei 6.620 de 1978, a Lei de Segurança Nacional da época

 

A Lei de Segurança Nacional

Houve muitas Leis de Segurança Nacional. A que embasou a prisão preventiva do então sindicalista Luiz Inácio da Silva — "codinome: Lula", segundo anotação da polícia política — foi a lei 6.620 de 17 de dezembro de 1978.

Assinada pelo presidente Ernesto Geisel e pelo ministro da Justiça Armando Falcão, a lei tinha 55 artigos e estabelecia penas de até 30 anos de reclusão para quem se insurgisse contra o país ou contra a ordem.

Quem tentasse sabotar instalação militar, navio ou estaleiro, por exemplo, poderia pegar 15 anos de cadeia. A pena dobraria se a sabotagem resultasse em lesão corporal grave ou morte. Também era proibido fazer "propaganda subversiva", por meio de quaisquer veículos de comunicação, comício, manifestação ou greve.

O Artigo 36, no qual Lula foi enquadrado, definia o crime de incitamento, subdividido em seis incisos, dois deles citados no indiciamento do sindicalista. Lula havia incitado "à desobediência coletiva às leis" (inciso II) e "à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis" (inciso III).

Muito antes de 1978, no entanto, já havia Lei de Segurança Nacional. A primeira foi sancionada em 4 de abril de 1935, definindo crimes contra a ordem política e social e inaugurando o costume de criar leis e procedimentos específicos, normalmente com maior celeridade de condenação e menos garantias processuais, para os crimes contra a segurança do Estado. Nos anos que se seguiram, aquela Lei número 38 de 1935 ensejou diversas outras leis e decretos que regulamentaram a forma de julgar e punir crimes políticos durante o Estado Novo (1937-1945). Após a ditadura de Vargas, foi a Lei número 1.802 de 1953 que se ocupou de definir e regulamentar os crimes contra a ordem política e social por um curto período democrático.

Deflagrado o golpe militar de 1964, a Lei de Segurança Nacional ganhou novos contornos com o Decreto-Lei número 314, de 1967, reformado pelo Decreto-Lei número 510 de 1969. Agora, o julgamento desses crimes passara da justiça comum para a justiça militar. Confundia-se propositalmente crimes contra o governo e crimes contra o país, como se fossem a mesma coisa. E distinguia-se segurança externa de segurança interna a fim, sobretudo, de conferir aromas de nacionalismo às medidas supostamente protetivas abraçadas pelo legislador de coturnos. Novas versões foram sancionadas em 1972, no governo Médici, e em 1978, no governo Geisel.

Em novembro de 2019, vigora a Lei 7.170, sancionada em 14 de dezembro de 1983 pelo então presidente João Figueiredo. Em seu artigo 23, a lei prevê detenção de 1 a 4 anos para quem incitar à subversão da ordem política ou social (inciso I) ou à luta com violência entre as classes sociais (inciso III). O artigo 26, por sua vez, prevê a mesma pena para quem "caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação". Espanta que a lei tenha sobrevivido à redemocratização e ainda vigore 36 anos depois.

 

Luiz Inácio contra a ordem e a nação?

Foi com base nesta Lei de Segurança Nacional de 1983 que, no início da semana, aventou-se no Congresso Nacional e nas redes sociais a possibilidade de pedir a prisão preventiva de Lula. "Temos uma Lei de Segurança Nacional que está aí para ser usada", afirmou Jair Bolsonaro na segunda-feira. 

Horas depois, deputados do PSL fustigados pelo presidente protocolaram na Procuradoria Geral da República (PGR) o primeiro pedido de prisão de Lula após sua soltura. Tecnicamente, um pedido de providência para que o Ministério Público faça o pedido, uma vez que apenas ao Ministério Público é dado esse direito (deputados, senadores e cidadãos comuns não podem pedir a prisão de ninguém).

Um senador por São Paulo, filiado ao PFL, fez outro pedido semelhante. Augusto Aras, o novo titular da PGR, prometeu remeter ambos os pedidos para o Ministério Público de São Bernardo do Campo, onde o ex-presidente tem domicílio.

Na terça-feira, um advogado do MBL protocolou outro pedido semelhante, desta vez diretamente ao Ministério Público Federal, e incluiu o ex-ministro José Dirceu na ação. Dirceu, também condenado na operação Lava Jato e solto na semana passada, teria, segundo o texto, incitado ao crime e ao terrorismo em pronunciamentos, exatamente como o ex-presidente.

Para os que o acusam, os primeiros discursos de Lula após a soltura foram radicais, extremados, ou seja, passaram do ponto.

O ex-ministro José Carlos Dias considera "uma loucura" a proposta de prender Lula com base na LSN. Titular da pasta da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso e hoje presidente da Comissão Arns de defesa dos direitos humanos, com blog no UOL, Dias afirmou que Bolsonaro está "querendo criar caso". Para Fernando Hideo, advogado criminalista e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, pedidos de prisão com base na LSN são "um absurdo". "É preciso ficar atento, esse pedido pode gerar uma responsabilidade criminal aos próprios deputados por denunciação caluniosa", alerta o advogado.

Não chega a surpreender que apoiadores de Bolsonaro, um admirador empedernido dos anos de chumbo, recorram a um entulho da ditadura para interditar a liderança rediviva de Lula.

O ex-sindicalista, para surpresa de muitos, ainda organiza o movimento e orienta o Carnaval após 580 dias preso em Curitiba.

Em 1981, Lula foi condenado a três anos e meio de prisão pela Lei de Segurança Nacional. A segunda instância confirmou a condenação, primeiro num julgamento fraudado, em que a sentença já estava pronta e datilografada antes da audiência no tribunal, e meses depois em novo julgamento. Impetrado recurso, o caso ascendeu para tribunal superior, militar, que acabou se declarando inadequado para julgar sobre a greve, remetendo o caso para a Justiça comum. O deixa-que-eu-deixo entre os tribunais civil e militar acabou favorecendo a prescrição da pena e beneficiando o réu.

Conto essa e outras histórias na biografia "Marisa Letícia Lula da Silva", editado pela Alameda Editorial, com lançamento previsto para fevereiro de 2020.

 

Sobre o Autor

Camilo Vannuchi é jornalista e escritor. Atua nas áreas de direitos humanos e direito à comunicação. Foi membro da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). É mestre e doutorando em Ciências da Comunicação e integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, filiado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi repórter e editor nas revistas IstoÉ e Época São Paulo e colunista no site da Carta Capital. Atualmente, trabalha na elaboração de um livro-reportagem sobre a vala clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, onde foram ocultadas mais de mil ossadas durante a ditadura militar.

Sobre o Blog

Espaço dedicado a ampliar o debate sobre direito à memória e à verdade por meio da publicação de notícias e análises relacionadas à ditadura militar (1964-1985) e à justiça de transição. Episódios recentes que inspirem à denúncia de violações de direitos, à crítica do autoritarismo ou à defesa da democracia também são assuntos deste blog.