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Camilo Vannuchi

Você já leu Marighella, o inimigo público número 1?

Camilo Vannuchi

12/11/2019 17h11

Enquanto o filme de Wagner Moura não estreia no Brasil, com Seu Jorge no papel principal e críticas ostensivas de Jair Bolsonaro, escritos daquele que foi declarado "inimigo público número 1" por Gama e Silva, ministro da Justiça do AI-5, chega às livrarias pelas mãos do filósofo Vladimir Safatle, professor titular do departamento de filosofia da USP.

Gama e Silva, ministro da Justiça do general-presidente Costa e Silva, declara o comunista Carlos Marighella "inimigo público número 1" da ditadura, em 1968

Não se trata de uma nova biografia, na esteira do premiado catatau publicado por Mário Magalhães pela Companhia das Letras em 2012. Tampouco o roteiro do filme. O que chega às livrarias nesta semana, com o sugestivo título de "Chamamento ao povo brasileiro" (Ubu, 320 págs., R$ 59,90), é uma coletânea de textos escritos pelo próprio Marighella ao longo da vida.

O baiano Carlos Marighella não era nenhum menino quando foi executado a tiros por agentes do DOPS na Alameda Casa Branca, em São Paulo, 50 anos atrás. Naquele ano em que a luta armada despontava, aos olhos de muitos, como única alternativa possível de resistência à ditadura num cenário de estrangulamento total, sobretudo após a edição do AI-5 em dezembro do ano anterior, Marighella tinha 57 anos e ampla experiência na política. Dirigente do Partido Comunista Brasileiro, perseguido e preso por seis anos sob a ditadura do Estado Novo de Getúlio, nos anos 1930 e 1940, deputado federal pela Bahia, Marighella divergiu da opção pela resistência institucional feita pelo comitê central de seu partido após o golpe de 1964. Para ele, não havia mais espaço para a política convencional, discutindo ideias, propondo medidas e discursando na tribuna.

Numa época em que os opositores do regime eram impedidos de se organizar, se manifestar, publicar denúncias ou fazer oposição por vias institucionais como o parlamento, os partidos políticos e o movimento estudantil, Marighella optou por radicalizar. A luta armada seria, na sua opinião, a única forma de fazer frente à truculência de um sistema que, àquela altura, já torturava e matava, com anuência e incentivo do Estado. Ele mesmo havia sido alvejado a tiros em 1964, semanas após o golpe, dentro de um cinema numa tarde de sábado. Tiros desferidos a curta distância por um agente do DOPS, como se verificou. Líder popular e de esquerda, Marighella incomodava muito antes de pegar em armas.

À frente da Ação Libertadora Nacional (ALN), Marighella entrou na clandestinidade para se dedicar integralmente à guerrilha. Era preciso produzir e imprimir manifestos, denunciar os abusos da ditadura, assaltar bancos para financiar a atividade de resistência, furtar armas dos quartéis. Mais tarde, o sequestro de embaixadores estrangeiros, um americano e um alemão, entrou na lista de tarefas revolucionárias por dois motivos: exigir como resgate a libertação de correligionários, políticos e intelectuais que sofriam nas celas e nos porões da repressão e, ao mesmo tempo, ampliar a divulgação das razões e dos objetivos da luta armada, exigindo a leitura de manifestos em emissoras de rádio e televisão.

Em resposta, a repressão radicalizou seus métodos. Após a execução de Marighella, numa armadilha montada pelo delegado do DOPS Sérgio Paranhos Fleury, a guerrilha urbana foi inoculada em dois ou três anos. A supremacia do aparato repressivo foi consagrada aos custos de mais de 400 mortes e desaparecimentos forçados, 2 mil pessoas torturadas e mais de 5 mil exiladas, considerando-se apenas os banimentos oficiais.

Marighella vai à redação do Jornal do Brasil, no Rio, no dia em que deixa a prisão em 31 de julho de 1964

O que pouca gente sabe, ainda hoje, é que o comunista Carlos Marighella foi também poeta e escritor, autor de uma produção literária inspirada e inspiradora, hábito que o acompanhou inclusive durante a guerrilha.

A inclinação para as letras surgiu ainda adolescente, aluno do Ginásio da Bahia, quando respondeu em versos a uma prova de física. Um de seus mais belos poemas, o soneto "Liberdade", foi escrito de dentro de uma cela, em 1939. O livro "Por que resisti à prisão", lançado em 1965, foi chamado por Antonio Candido de "documento inestimável", e por Jorge Amado de "curioso e fascinante". "Com o mesmo calor, o mesmo ritmo expressivo com que narrou as vicissitudes da prisão em suas diferentes fases, Marighella reflete sobre o processo do golpe (falsamente qualificado de "revolução" pelos seus promotores), caracterizando-o como tentativa de barrar as aspirações populares, cuja força vinha crescendo", escreveu Candido.

Seguiram-se ao livro poemas como "O país de uma nota só", documentos de veiculação restrita direcionados à direção do PCB ou à militância do partido, manifestos como o "Chamamento ao povo brasileiro", de 1968, que dá nome à antologia organizada por Safatle, e análises da conjuntura política e da própria luta armada, sobretudo entre 1968 e 1969.

Os principais textos de Marighella, com exceção do polêmico "Manual do Guerrilheiro Urbano", de 1969, estão reunidos no livro que a Editora Ubu lança nesta terça-feira, às 19h30, com um debate na Ocupação 9 de Julho (Rua Álvaro de Carvalho, 427), em São Paulo. O título, vale reforçar, não deve ser interpretado apressadamente como uma convocação para o Brasil de 2019 (nem o Chile, nem a Bolívia…). Uma boa sugestão de leitura enquanto esperamos o filme com Seu Jorge.

Confira a seguir alguns trechos e poemas presentes no livro.

 

LIBERDADE

Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.

E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome.

 

O PAÍS DE UMA NOTA SÓ

Não pretendo nada,
nem flores, louvores, triunfos.
Nada de nada.
Somente um protesto,
uma brecha no muro,
e fazer ecoar,
com voz surda que seja,
e sem outro valor,
o que se esconde no peito,
no fundo da alma
de milhões de sufocados.
Algo por onde possa filtrar o pensamento,
a ideia que puseram no cárcere.
A passagem subiu,
o leite acabou,
a criança morreu,
a carne sumiu,
o IPM prendeu,
o Dops torturou,
o deputado cedeu,
a linha dura vetou,
a censura proibiu,
o governo entregou,
o desemprego cresceu,
a carestia aumentou,
o Nordeste encolheu,
o país resvalou.
Tudo dó,
tudo dó,
tudo dó…
E em todo o país
repercute o tom
de uma nota só…
de uma nota só.

 

Sobre o atentado

"Os agentes do Dops dispararam um tiro contra o meu peito para me matar. A arma é da polícia, e isto é testemunhado pela bala que foi extraída do meu corpo pelo dr. Acioly Maia, médico-cirurgião do Hospital da Penitenciária Professor Lemos Brito.

O tiro foi desfechado à queima-roupa, dentro do cinema. O pormenor é importante: foi dentro do cinema. A casa de espetáculos estava cheia de gente. Era uma tarde de sábado, e grande a afluência de crianças. O filme era significativamente o Rififi no safari.

A selvageria e a brutalidade policial não têm qualificativos. Por que atiraram com o cinema cheio de crianças?" (em "Por que resisti à prisão", 1965)

 

Sobre a violência da ditadura

"A ditadura instaurada no Brasil pelo golpe militar de 1º de abril criou para o nosso povo uma situação de pesados sacrifícios, que vão desde a entrega e a submissão do país aos Estados Unidos até à supressão brutal das liberdades com a subsequente implantação do terror político e ideológico e o desencadeamento de perseguição em massa.

Instituído pela força o poder militar, milhares de cidadãos foram presos, espancados, torturados, espezinhados pela polícia e pelos oficiais encarregados dos IPMs [Inquéritos Policiais Militares]. Muitos brasileiros ainda se encontram nas prisões, enclausurados em quartéis, nos cárceres medievais da marinha de guerra ou em campos de concentração nos moldes nazistas – como acontece em Itaqui, no Rio Grande do Sul.

Os que recorreram ao suicídio – para escapar aos bárbaros suplícios físicos e morais – e os que foram assassinados às escondidas ou apareceram agonizantes, os sequestrados ou baleados pela polícia, bem como os que enlouqueceram ou ficaram aleijados pelas torturas e sevícias do Dops, não são em pequeno número.

As torturas revelam a degradação humana da ditadura. Os carrascos de hoje, trazidos na crista da quartelada, empregam métodos que superam os velhos sistemas dos escravocratas brasileiros e suplantam os mais requintados suplícios dos tempos da Inquisição." (em "Por que resisti à prisão", 1965)

 

Sobre a luta de resistência

"Onde quer que surja a luta de resistência, é ela saudada com satisfação e, por toda a parte, encontra apoio, solidariedade e simpatia.

Dessa resistência se alimenta a oposição popular.

Por sua vez, a luta de resistência dos exilados brasileiros se desenvolve com o apoio dos povos que amam a democracia e se solidarizam com o povo do Brasil empenhado em dar combate à ditadura.

O que está em jogo, portanto, é a utilização – na mais ampla escala possível – de formas de luta de resistência de massas.

A ditadura surgiu da violência empregada pelos golpistas contra a nação, e não pode esperar menos do que a violência por parte do povo para enfrentar os crimes cometidos pelo governo e pelos militares em detrimento da condição humana e dos interesses nacionais." (em "Por que resisti à prisão", 1965)

 

Sobre o caminho pacífico

"A crise brasileira chegou a um ponto em que o proletariado não pode pretender resolvê-la seguindo a fórmula anterior – caminho pacífico e apoio à burguesia na luta pelas reformas.

Este caminho, aliás, só poderia ter tido êxito no Brasil se a liderança marxista estivesse munida de suficiente lastro ideológico, que lhe permitisse dirigir a luta sem perder o sentido de classe ou desviar-se dos rumos da revolução. Aconteceu, porém, o contrário, e o caminho pacífico das reformas foi levado à derrota pelo golpe de 1º de abril.

Agora, o caminho pacífico está superado. Persistir nele significa adotar uma estratégia que concorrerá para a institucionalização do golpe e da ditadura." (em "A crise brasileira", 1966)

 

Sobre o golpe

"De algum lugar do Brasil me dirijo à opinião pública, especialmente aos operários, agricultores pobres, estudantes, professores, jornalistas e intelectuais, padres e bispos, aos jovens e à mulher brasileira.

Os militares tomaram o poder pela violência em 1964 e foram eles mesmos que abriram o caminho à subversão. Não se podem queixar nem ficar assombrados de que os patriotas trabalhem para desalojá-los dos postos de mando que usurparam descaradamente.

Afinal, que classe de ordem querem preservar os "gorilas"? Os assassinatos de estudantes na praça pública? Os fuzilamentos do Esquadrão da Morte? As torturas e espancamentos no Dops e nos quartéis militares?" (em "Chamamento ao povo brasileiro", dezembro de 1968)

 

Sobre a luta armada

"A luta de guerrilhas, através da história, sempre foi um instrumento de libertação dos povos e a experiência provou, inúmeras vezes, quão importante é e que valor tem na mão dos explorados." (em "Algumas questões sobre as guerrilhas no Brasil", publicado no Jornal do Brasil, 1968)

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Chamamento ao povo brasileiro
Carlos Marighella
Organização: Vladimir Safatle
320 págs.
R$ 59,90
Lançamento: 12/11, às 19h30
Ocupação 9 de julho (Rua Álvaro de Carvalho, 427)

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Ditadura nunca mais.
Escreva para o blog: camilo.vannuchi@gmail.com

Sobre o Autor

Camilo Vannuchi é jornalista e escritor. Atua nas áreas de direitos humanos e direito à comunicação. Foi membro da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). É mestre e doutorando em Ciências da Comunicação e integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, filiado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi repórter e editor nas revistas IstoÉ e Época São Paulo e colunista no site da Carta Capital. Atualmente, trabalha na elaboração de um livro-reportagem sobre a vala clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, onde foram ocultadas mais de mil ossadas durante a ditadura militar.

Sobre o Blog

Espaço dedicado a ampliar o debate sobre direito à memória e à verdade por meio da publicação de notícias e análises relacionadas à ditadura militar (1964-1985) e à justiça de transição. Episódios recentes que inspirem à denúncia de violações de direitos, à crítica do autoritarismo ou à defesa da democracia também são assuntos deste blog.